domingo, 1 de maio de 2011

Da série: uma carta aos domingos.

Publico hoje, sem me estender muito nos comentários, um conjunto de aforismos que Nietzsche compôs na forma de pequenos bilhetes para Lou von Salomé em Tautenburg, entre os dias 08 e 24 de agosto de 1882. O primeiro grupo trata do heroísmo, e apresenta formulações muito inspiradas sobre o tema, que de resto será retomado e se tornará decisivo na nova fase do pensamento de Nietzsche, que se inicia com a publicação do ZA I. A ética do heroísmo não corresponde ao ideal perfeccionista de Nietzsche: o herói é antes um instrumento que se sacrifica em nome do homem de exceção, e que encontra neste sacrifício o sentido (limitado) de sua grandeza. O segundo grupo trata do estilo. Embora reconheça que o ponto é polêmico, creio que parte do que Nietzsche diz sobre o tema neste bilhete a Lou corrobora a posição que apresentei no meu último post de domingo passado: o estilo diz respeito antes de tudo às leis de organização do material verbal da linguagem, e só indiretamente (muito indiretamente) às escolhas relativas ao modo de exposição de argumentos e às chamadas figuras de linguagem.
Para finalizar o meu comentário de hoje, cabe observar que ao afirmar que se tratava de um conjunto de aforismos eu tinha em mente o sentido preciso do termo 'aforismo', ou seja, não o sentido um tanto frouxo em que Nietzsche utiliza o termo para nomear o seu modo mais usual de exposição, que está mais próximo de um fragmento no sentido do primeiro romantismo alemão, ou de um ensaio extremamente condensado, que ele foi talvez o único a cultivar e certamente o primeiro a conduzir à sua quase perfeição literária e argumentativa. O aforismo no sentido genuíno do termo designa uma forma literária não argumentativa, assertiva, quase imperativa, indiscernível da máxima e da sentença, que equilibra elementos do chiste e do dito enigmático. Nietzsche não foi um exímio praticante deste gênero literário, na minha opinião. Mas aqueles que ele redigiu para Lou são bastante instigantes.
Comentários e sugestões para aprimorar a tradução são sempre bem-vindos. Um ótimo fim de domingo para todos.

Nietzsche a Lou von Salomé, entre 08 e 24 de agosto de 1882.

1. Homens que aspiram à grandeza geralmente são homens maus; aspirar à grandeza é o único modo que têm de suportar a si mesmos.
2. Aquele que em Deus já não encontra a grandeza não a encontra em parte alguma, e precisa ou negá-la ou -- criá-la (ajudar a criá-la).
3. +++
4. A imensa expectativa em relação ao amor sexual corrompe nas mulheres o olhar para perspectivas mais distantes.
5. Heroísmo -- é a disposição de um homem que aspira a um fim em comparação com o qual ele mesmo nada conta. Heroísmo é a boa vontade para com o absoluto ocaso de si mesmo.
6. O oposto do ideal heróico é o ideal do desenvolvimento harmônico do todo -- um belo oposto e muito mais desejável! Mas este é um ideal para homens fundamentalmente bons (Goethe, p. E.).
Para homens o amor é algo muito diferente do que para as mulheres. Para a maioria o amor pode bem ser uma espécie de avareza; para o restante, o amor é a adoração de uma divindade sofredora e oculta.
Se o amigo Paul Rée lesse isso, ele me tomaria por louco.
Como vai? -- Nunca houve em Tautenburg um dia mais belo do que hoje. O ar claro, amedo, vigoroso: assim como todos nós deveríamos ser.
Cordialmente,
F.N.

A Lou Salomé em Tautenburg (Tautenburg, entre os dias 08 e 24 de agosto de 1882).

Para a doutrina do estilo
1. A primeira coisa que se faz necessária é a vida: o estilo deve viver.
2. O estilo deve ser adequado a você em relação a uma pessoa muito concreta com a qual você quer se comunicar (lei da dupla relação).
3. Antes que se esteja autorizado a escrever é preciso saber com precisão: "eu diria e exporia oralmente esta matéria assim e assado". O escrever precisa ser uma imitação.
4. Como faltam àquele que escreve muitos dos recursos disponíveis àquele que expõe oralmente, é preciso que ele adote como modelo uma forma de exposição oral muito expressiva : sua cópia, ou seja, o escrito já saíra necessariamente muito mais empalidecida.
5. A riqueza de vida se revela na riqueza de gestos. É preciso aprender a sentir tudo como gestos: a extensão e brevidade das frases, a pontuação, a escolha das palavras, as pausas, a sequência dos argumentos --.
6. Cuidado com o período! Direito ao período têm somente aquelas pessoas que também ao falar têm um grande fôlego. Para a maior parte das pessoas o período é uma afetação.
7. O estilo deve demonstrar que se crê nos seus pensamentos, e que eles são sentidos, e não somente pensados.
8. Quanto mais abstrata a verdade que se pretende ensinar, tanto mais necessário que primeiramente se seduzam os sentidos para ela.
9. O tino do bom prosador na escolha de seus meios consiste em acercar-se intimamente da poesia, sem jamais transbordar para o poético.
10. Não é gentil nem prudente antecipar para o leitor as mais singelas objeções. É muito gentil e muito prudente deixar a cargo do leitor expressar por si mesmo a quintessência de nossa sabedoria.
F.N.
um bom dia,
minha querida Lou!

0 comentários:

Postar um comentário