Publico hoje, sem me estender muito nos comentários, um conjunto de aforismos que Nietzsche compôs na forma de pequenos bilhetes para Lou von Salomé em Tautenburg, entre os dias 08 e 24 de agosto de 1882. O primeiro grupo trata do heroísmo, e apresenta formulações muito inspiradas sobre o tema, que de resto será retomado e se tornará decisivo na nova fase do pensamento de Nietzsche, que se inicia com a publicação do ZA I. A ética do heroísmo não corresponde ao ideal perfeccionista de Nietzsche: o herói é antes um instrumento que se sacrifica em nome do homem de exceção, e que encontra neste sacrifício o sentido (limitado) de sua grandeza. O segundo grupo trata do estilo. Embora reconheça que o ponto é polêmico, creio que parte do que Nietzsche diz sobre o tema neste bilhete a Lou corrobora a posição que apresentei no meu último post de domingo passado: o estilo diz respeito antes de tudo às leis de organização do material verbal da linguagem, e só indiretamente (muito indiretamente) às escolhas relativas ao modo de exposição de argumentos e às chamadas figuras de linguagem.
Para finalizar o meu comentário de hoje, cabe observar que ao afirmar que se tratava de um conjunto de aforismos eu tinha em mente o sentido preciso do termo 'aforismo', ou seja, não o sentido um tanto frouxo em que Nietzsche utiliza o termo para nomear o seu modo mais usual de exposição, que está mais próximo de um fragmento no sentido do primeiro romantismo alemão, ou de um ensaio extremamente condensado, que ele foi talvez o único a cultivar e certamente o primeiro a conduzir à sua quase perfeição literária e argumentativa. O aforismo no sentido genuíno do termo designa uma forma literária não argumentativa, assertiva, quase imperativa, indiscernível da máxima e da sentença, que equilibra elementos do chiste e do dito enigmático. Nietzsche não foi um exímio praticante deste gênero literário, na minha opinião. Mas aqueles que ele redigiu para Lou são bastante instigantes.
Comentários e sugestões para aprimorar a tradução são sempre bem-vindos. Um ótimo fim de domingo para todos.
Nietzsche a Lou von Salomé, entre 08 e 24 de agosto de 1882.
1. Homens que aspiram à grandeza geralmente são homens maus; aspirar à grandeza é o único modo que têm de suportar a si mesmos.
2. Aquele que em Deus já não encontra a grandeza não a encontra em parte alguma, e precisa ou negá-la ou -- criá-la (ajudar a criá-la).
3. +++
4. A imensa expectativa em relação ao amor sexual corrompe nas mulheres o olhar para perspectivas mais distantes.
5. Heroísmo -- é a disposição de um homem que aspira a um fim em comparação com o qual ele mesmo nada conta. Heroísmo é a boa vontade para com o absoluto ocaso de si mesmo.
6. O oposto do ideal heróico é o ideal do desenvolvimento harmônico do todo -- um belo oposto e muito mais desejável! Mas este é um ideal para homens fundamentalmente bons (Goethe, p. E.).
Para homens o amor é algo muito diferente do que para as mulheres. Para a maioria o amor pode bem ser uma espécie de avareza; para o restante, o amor é a adoração de uma divindade sofredora e oculta.
Se o amigo Paul Rée lesse isso, ele me tomaria por louco.
Como vai? -- Nunca houve em Tautenburg um dia mais belo do que hoje. O ar claro, amedo, vigoroso: assim como todos nós deveríamos ser.
Cordialmente,
F.N.
A Lou Salomé em Tautenburg (Tautenburg, entre os dias 08 e 24 de agosto de 1882).
Para a doutrina do estilo
1. A primeira coisa que se faz necessária é a vida: o estilo deve viver.
2. O estilo deve ser adequado a você em relação a uma pessoa muito concreta com a qual você quer se comunicar (lei da dupla relação).
3. Antes que se esteja autorizado a escrever é preciso saber com precisão: "eu diria e exporia oralmente esta matéria assim e assado". O escrever precisa ser uma imitação.
4. Como faltam àquele que escreve muitos dos recursos disponíveis àquele que expõe oralmente, é preciso que ele adote como modelo uma forma de exposição oral muito expressiva : sua cópia, ou seja, o escrito já saíra necessariamente muito mais empalidecida.
5. A riqueza de vida se revela na riqueza de gestos. É preciso aprender a sentir tudo como gestos: a extensão e brevidade das frases, a pontuação, a escolha das palavras, as pausas, a sequência dos argumentos --.
6. Cuidado com o período! Direito ao período têm somente aquelas pessoas que também ao falar têm um grande fôlego. Para a maior parte das pessoas o período é uma afetação.
7. O estilo deve demonstrar que se crê nos seus pensamentos, e que eles são sentidos, e não somente pensados.
8. Quanto mais abstrata a verdade que se pretende ensinar, tanto mais necessário que primeiramente se seduzam os sentidos para ela.
9. O tino do bom prosador na escolha de seus meios consiste em acercar-se intimamente da poesia, sem jamais transbordar para o poético.
10. Não é gentil nem prudente antecipar para o leitor as mais singelas objeções. É muito gentil e muito prudente deixar a cargo do leitor expressar por si mesmo a quintessência de nossa sabedoria.
F.N.
um bom dia,
minha querida Lou!
Para finalizar o meu comentário de hoje, cabe observar que ao afirmar que se tratava de um conjunto de aforismos eu tinha em mente o sentido preciso do termo 'aforismo', ou seja, não o sentido um tanto frouxo em que Nietzsche utiliza o termo para nomear o seu modo mais usual de exposição, que está mais próximo de um fragmento no sentido do primeiro romantismo alemão, ou de um ensaio extremamente condensado, que ele foi talvez o único a cultivar e certamente o primeiro a conduzir à sua quase perfeição literária e argumentativa. O aforismo no sentido genuíno do termo designa uma forma literária não argumentativa, assertiva, quase imperativa, indiscernível da máxima e da sentença, que equilibra elementos do chiste e do dito enigmático. Nietzsche não foi um exímio praticante deste gênero literário, na minha opinião. Mas aqueles que ele redigiu para Lou são bastante instigantes.
Comentários e sugestões para aprimorar a tradução são sempre bem-vindos. Um ótimo fim de domingo para todos.
Nietzsche a Lou von Salomé, entre 08 e 24 de agosto de 1882.
1. Homens que aspiram à grandeza geralmente são homens maus; aspirar à grandeza é o único modo que têm de suportar a si mesmos.
2. Aquele que em Deus já não encontra a grandeza não a encontra em parte alguma, e precisa ou negá-la ou -- criá-la (ajudar a criá-la).
3. +++
4. A imensa expectativa em relação ao amor sexual corrompe nas mulheres o olhar para perspectivas mais distantes.
5. Heroísmo -- é a disposição de um homem que aspira a um fim em comparação com o qual ele mesmo nada conta. Heroísmo é a boa vontade para com o absoluto ocaso de si mesmo.
6. O oposto do ideal heróico é o ideal do desenvolvimento harmônico do todo -- um belo oposto e muito mais desejável! Mas este é um ideal para homens fundamentalmente bons (Goethe, p. E.).
Para homens o amor é algo muito diferente do que para as mulheres. Para a maioria o amor pode bem ser uma espécie de avareza; para o restante, o amor é a adoração de uma divindade sofredora e oculta.
Se o amigo Paul Rée lesse isso, ele me tomaria por louco.
Como vai? -- Nunca houve em Tautenburg um dia mais belo do que hoje. O ar claro, amedo, vigoroso: assim como todos nós deveríamos ser.
Cordialmente,
F.N.
A Lou Salomé em Tautenburg (Tautenburg, entre os dias 08 e 24 de agosto de 1882).
Para a doutrina do estilo
1. A primeira coisa que se faz necessária é a vida: o estilo deve viver.
2. O estilo deve ser adequado a você em relação a uma pessoa muito concreta com a qual você quer se comunicar (lei da dupla relação).
3. Antes que se esteja autorizado a escrever é preciso saber com precisão: "eu diria e exporia oralmente esta matéria assim e assado". O escrever precisa ser uma imitação.
4. Como faltam àquele que escreve muitos dos recursos disponíveis àquele que expõe oralmente, é preciso que ele adote como modelo uma forma de exposição oral muito expressiva : sua cópia, ou seja, o escrito já saíra necessariamente muito mais empalidecida.
5. A riqueza de vida se revela na riqueza de gestos. É preciso aprender a sentir tudo como gestos: a extensão e brevidade das frases, a pontuação, a escolha das palavras, as pausas, a sequência dos argumentos --.
6. Cuidado com o período! Direito ao período têm somente aquelas pessoas que também ao falar têm um grande fôlego. Para a maior parte das pessoas o período é uma afetação.
7. O estilo deve demonstrar que se crê nos seus pensamentos, e que eles são sentidos, e não somente pensados.
8. Quanto mais abstrata a verdade que se pretende ensinar, tanto mais necessário que primeiramente se seduzam os sentidos para ela.
9. O tino do bom prosador na escolha de seus meios consiste em acercar-se intimamente da poesia, sem jamais transbordar para o poético.
10. Não é gentil nem prudente antecipar para o leitor as mais singelas objeções. É muito gentil e muito prudente deixar a cargo do leitor expressar por si mesmo a quintessência de nossa sabedoria.
F.N.
um bom dia,
minha querida Lou!
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