sábado, 29 de janeiro de 2011

Nietzsche e o kantismo: duas questões negligenciadas pela literatura secundária

Dois temas me parecem ausentes na boa literatura secundária sobre Nietzsche e o kantismo publicada na última década e que eu espero poder discutir mais pormenorizadamente aqui neste blog no decorrer do ano (eu tenho em mente os seguintes autores: M. Green, K. Hill, M. Riccardi, P. Bornedal, T. Doyle)
Os temas pelos quais tenho me interessado e que me parecem ausentes desta discussão são os sguintes:
(1) A crítica que Nietzsche dirige aos pressupostos do que poderíamos chamar, recorrendo a uma expressão que a polêmica entre W. Clifford e W. James tornou célebre, de ética kantiana da crença (em especial da crença moral). Este tema tem uma importante conexão com o que cada um deles (Kant e Nietzsche) supõe que são as implicações práticas de certas variedades de ceticismo epistemológico. Nietzsche acusa Kant de recorrer ao ceticismo epistemológico para imunizar nossas intuições ou convicções morais tradicionais, no sentido de autorizar o agente moral a adotar crenças que não são epistemicamente confiáveis, mas que atendem a um suposto interesse da razão prática. Se esta é a posição de Nietzsche, isso significa que deveríamos atribuir a ele a defesa de uma posição rigorista no que se refere à ética da crença moral, pois ele parece estar recomendando (ou mesmo prescrevendo) que sejamos absolutamente rigorosos em relação às credenciais epistêmicas de nossas crenças morais, o que não é de modo algum uma exigência do kantismo, que autoriza algumas crenças cujo estatuto é de mera razoabilidade, mas que tem forte apelo intuitivo. Creio que Tugendhat tinha isso em mente ao afirmar que Nietzsche teria cometido o equívoco de submeter a consciência moral. às exigências da consciência intelectual, invertendo o que ele supõe que deveria ser a correta hierarquia entre valores epistêmicos e valores morais. A minha dúvida é se Nietzsche de fato defende algo como um rigorismo (evidencialismo extremado) no campo da ética da crença, ou se ele adota esta posição apenas para poder montar um argumento ad hominem contra a filosofia moral de Kant. Em outra ocasião eu defendi esta última alternativa ao comentar o aforismo 335 de A Gaia Ciência, mas a solução não me convenceu plenamente. No aforismo 335 Nietzsche procura explorar contra Kant a concessão que este mesmo faz (e que concorda com as posições de Nietzsche) de que nenhum agente moral tem acesso epistêmico às suas motivações últimas, o que na ótica de Kant é uma razão a mais para adotarmos o formalismo (ou seja, a consideração exclusiva da qualidade formal da máxima) como foco da avaliação moral e abandonarmos a perspectiva da análise introspectiva dos motivos, dada a obscuridade do coração humano, etc. Nietzsche entende que esta condição é incontornável, mas que a conclusão que se segue é que deveríamos suspender nosso juízo moral sobre as ações e sobre as pessoas. Aqui há uma sofisticada estratégia de contestação do kantismo em ética, uma estratégia que conduz ao amoralismo a partir de premissas epistêmicas, o que nem sempre é o caso, obviamente. Na maioria das vezes Nietzsche argumenta pelo amoralismo a partir de premissas relacionadas à defesa de valores vitais ou então quase religiosos (como nos casos em que ele argumenta por uma atitude inteiramente afirmativa que é identificada com o amor fati, por exemplo).
(2) O segundo tema que tem me interessado e que tem estado ausente da boa literatura secundária sobre Nietzsche e o kantismo a que fiz referência acima é o da estrutura formal do argumento transcendental. Creio que em um sentido fraco e modesto, que é o modo com contemporaneamente alguns filósofos consideram que ainda é possível mantermos a pretensão de construir bons argumentos transcendentais, nós poderíamos encontrar pelo menos uma ocorrência de argumento transcendental em Nietzsche, em alguns fragmentos póstumos nos quais ele defende o primado do corpo: neste contexto ele é seduzido pela possibilidade de construir com base nesta noção um argumento que reivindica para o mesmo o status de imprescindível. O argumento tem mais ou menos a seguinte estrutura: de todos os componentes da minha experiência, o mais saliente é o fato de que ela é uma experiência que se dá pela mediação corporal. De todos os elementos primitivos da experiência, o corpo é aquele para o qual temos as melhores razões para reivindicar a condição de imprescindível, no sentido de que é a nossa crença mais antiga e mais inerradicável. Tentar imaginar uma experiência da qual o corpo não fosse um componente seria o mais arduo dos exercícios filosóficos, no sentido de que seria o experimento mais radical de revisionismo metafísico. Creio que este é o critério para se considerar um candidato a argumento transcendental: ele funda uma reivindicação de indispensabilidade, certamente não para o conhecimento, mas para a experiência, no sentido mais básico. Creio que a associação frequente e quase imediata que se faz entre argumento transcendental e idealismo transcendental (uma associação que nada deve à estrutura formal do argumento, mas ao fato de que Kant tenha usado o primeiro para defender o segundo) nos cegou para a possibilidade de que esta fosse uma questão legítima a ser colocada para a filosofia de Nietzsche. É claro que esta é apenas uma das razões. A razão mais forte é que Nietzsche dominou como ninguém antes dele a arte de transformar reivindicações transcendentais em hipóteses genealógicas, o que foi uma verdadeira subversão do kantismo. Mas creio que não seria desmerecer a originalidade de Nietzsche como genealogista se chegassemos à conclusão de que ele considerou a possibilidade de argumentos transcendentais serem filosoficamente relevantes, mesmo que ele jamais tenha se decidido a publicá-los (o que está mais de acordo com seu temperamento epistemicamente cauteloso e avesso a apriorismos).
É isso. Alguém tem algum bom palpite sobre estes dois temas ou uma boa sugestão de leitura? Tendo em vista o interesse recente pelo tema mais geral sobre Nietzsche e o kantismo e o volume de publicações que isso tem gerado, é possível que eu tenha me esquecido de algum autor e cometido alguma grave omissão.

9 comentários:

  1. Olá Rogério!

    Acho que esse post é uma boa ocasião para testarmos a nova ambição do blog de servir como espaço informal pra discussão. Eu não saberia indicar em especial nenhuma fonte da literatura secundária que trate do tema, mas eu acho que eu teria um palpite, mesmo que meio rasteiro, pra pensar a sua primeira questão (que poderia conduzir indiretamente à segunda). Sua questão foi: "se Nietzsche de fato defende algo como um rigorismo (evidencialismo extremado) no campo da ética da crença, ou se ele adota esta posição apenas para poder montar um argumento ad hominem contra a filosofia moral de Kant". Ao que tudo indica, o problema que se coloca com relação à posição de Nietzsche frente à possibilidade de uma justificativa racional (sancionada epistemicamente) de nossas crenças e ações morais está associado a duas teses incompatíveis: a premissa cética do fenomenismo da experiência interna e a possibilidade de um rigorismo moral consequentemente sustentável. Se o agente não tem acesso privilegiado ao seu mundo interior, ou seja, ao mecanismo que determina sua ação, ele não está credenciado a justificá-la epistemicamente e portanto não pode afirmar o carácter moral ou não, seja de suas próprias ações, seja das ações dos outros; ou em termos mais gerais: ele não estaria justificado a preferir uma ação em detrimento de outra. Entretanto, Nietzsche parece reivindicar uma atitude rigorista baseada num apelo à consciência intelectual tanto no aforismo 335 quanto no aforismo 2 da GC, através de argumentos parcialmente distintos. De fato, a questão aqui é análoga ao antigo problema relativo à possibilidade de se viver segundo as premissas e exigências do ceticismo. Mas eu tenho a impressão que, nesse âmbito de questões, Nietzsche não concede a última palavra ao ceticismo. O fato é que Nietzsche, apesar de defender a tese do fenomenismo da experiência interna, busca desenvolver uma teoria dos afetos que está associada à teoria da vontade de poder como modelo antropológico e que pretende ocupar o lugar de tese psicológica/fisiológica acerca dos mecanismos que determinam a ação (na verdade esse é mesmo um dos pontos centrais do seu argumento a favor do fenomenismo da consciência; é aqui que o corpo assumiria o lugar de fio condutor). Esse é um aspecto crucial do seu método filosófico baseado na investigação histórica e psicológica (fisiológica), que se concretizará no método genealógico. Evidentemente há aqui um deslocamento da perspectiva do agente para a perspectiva do psicólogo (observador), que se encarregará de dissecar a ação e buscará colocar à mostra os afetos que constituem sua pré-história (além da GM, poderíamos ver um exemplo de aplicação desse método pelo próprio Nietzsche na sua noção de "inferência regressiva"). Isto é, em princípio, não é o agente que, introspectivamente, chegará a um conhecimento das "verdadeiras" motivações de sua ação, mas sim uma investigação positiva. Isso, porém, não exclui a possibilidade que o agente, após educado nos métodos rigorosos da observação psicológica, seja capaz, introspectivamente, de compreender de forma mais sofisticada suas próprias motivações. Enfim, o ponto de partida aqui é a possibilidade de uma ciência da moral que, associando psicologia, história e fisiologia seria capaz não somente de reconstruir uma história dos sentimentos morais e nos prover com um conhecimento mais sofisticado acerca dos mecanismos da ação (como diz o aforismo 16 de HH, a ciência rigorosa pode nos livrar parcialmente do mundo da representação), mas também, possivelmente (e aqui repousaria o ponto central da questão), iluminar, com base nesse conhecimento antropológico, nosso conhecimento acerca das necessidades da humanidade e das condições da cultura e estabelecer assim as próprias metas da ação, funcionando nesse sentido como modelo normativo.

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  2. Essa ideia é apresentada por Nietzsche, em certo sentido, no contexto do aforismo 335 da GC, na forma de uma exaltação da física, no aforismo 7 do mesmo livro, enquanto possibilidade futura, mas também já no aforismo 25 de HH, onde a moral kantiana aparece também como objeto de crítica, e no aforismo 353 de A. Ou seja, se o indivíduo, preso às tramas do fenomenismo de seu mundo interior e às normais morais da tradição, não é capaz de ter um acesso epistêmico privilegiado aos mecanismos de sua ação, a ciência da moral, ao contrário, poderia fornecer-lhe um conhecimento epistemicamente mais credenciado desses mecanismos e das necessidades e condições da cultura em geral, e funcionar assim, ao mesmo tempo, como "razão prática". Nesse sentido, o rigorismo seria sustentável, e se por um lado ele não corresponde de fato à posição final de Nietzsche, por outro lado a possibilidade de uma ciência positiva que cumpra um papel normativo no âmbito da ação moral não era de modo algum estranha às suas "inclinações positivistas".

    Bom, vai aí um palpite baseado numa intuição talvez meio rasteira, já que o problema da moral não é exatamente o ponto forte dos meus interesses atuais em Nietzsche. Mas espero que possa ser já um passo em direção à dinamização do blog como espaço informal pra discussão.

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  3. me confundi: o aforismo de Aurora ao qual eu me referia é o 453 e não o 353.

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  4. Muito obrigado pelos comentários, William. Creio que você aponta para uma solução que tem sido discutida na literatura secundária de língua inglesa, sobretudo em pequenas intervenções (na forma de papers), que procuram a confrontação com o kantismo a partir da oposição com kantianos contemporâneos, como Christine Korsgaard por exemplo, e enfatizam este deslocamento da perspectiva de primeira pessoa (do agente) para uma perspectiva de terceira pessoa (de uma descrição em termos naturalistas). Este é o caso do artigo de Mathias Risse: "Nietzschean 'Animal Psychology' versus Kantian Ethics", publicado no volume organizado por B. Leiter e N. Sinhababu: "Nietzsche and Morality". Eu não estou convencido de que a ênfase neste deslocamento permite conferir sentido aos aforismos e fragmentos postumos nos quais Nietzsche parece se comprometer com um evidencialismo extremado como marca da normatividade epistêmica: ou seja, com a tese de que o agente epistemicamente responsável não pode se contentar com crenças morais apenas porque elas correspondem às nossas intuições mais fortemente compartilhadas, mas cuja falsidade nao pode ser descartada. Estas passagens apontam para uma forte valorização da perspectiva de primeira pessoa e para uma concepção internalista do que signifia estar justificado racionalmente no plano das crenças práticas: eu devo ser capaz de acessar as razões pelas quais eu suponho que realizar tal ação é a coisa correta num dado momento. Mas nestas mesmas ocorrências Nietzsche não soa mais otimista epistemicamente. Então parece difícil evitar a conclusão de que o que está sendo recomendado (se é que não estamos lidando com um argumento de tipo ad hominem: e neste caso poderíamos sim entender que Nietzsche está sugerindo um deslocamento da questão para um enforque de terceira pessoa, com a possibilidade de um retorno posterior para a perspectiva do agente, devidamente esclarecido sobre os motivos de sua ação e capaz de reconsiderá-la normativamente)é a suspensão do juízo moral, ou algo ainda mais forte, na direção do amoralismo, que é a negação de que juízos morais possam ter valor de verdade. De todo modo, no caso de GC 335 creio que o argumento forte contra o kantismo só pode ser construído na perspectiva de primeira pessoa, e curiosamente numa direção que Kant consideraria exagerada, já que ele se contenta com um certo externalismo no que se refere ao foco da avaliação moral (centrado nas máximas) e confessa que a avaliação dos motivos (via introspecção) é um projeto fadado ao fracasso. Isso como reação espontânea e imediata ao seu palpite, que não é de modo algum rasteiro, muito antes pelo contrário.

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  5. Obrigado pela resposta e pela indicação do texto do Mathias Risse, Rogério! Quanto às suas objeções, concordo que, se tivermos que pensar o rigorismo em termos exclusivamente internalistas, chamar a atenção para esse deslocamento da perspectiva do agente para uma perspectiva de terceira pessoa realmente não resolve o problema. Ao tentar apresentar um palpite como resposta à sua questão, tomei como fio condutor somente a possibilidade de um rigorismo, e não de um rigorismo internalista. Em todo caso, porém, me resta a dúvida, pelo menos no que concerne o aforismo 335 da GC, se devemos realmente pensar o rigorismo em termos exclusivamente internalistas (o que, associado à tese do fenomenismo do mundo interior, conduz ao amoralismo). Confesso que não estou familiarizado com os fragmentos póstumos aos quais vc se refere, mas no que concerne o aforismo em questão, acredito que um dos aspectos que tornam o argumento geral desse texto bastante sofisticado se deve em grande parte ao fato de Nietzsche se mover com uma destreza exemplar entre internalismo e externalismo. Ao atentar somente para o aspecto internalista do argumento, temo que deixemos de lado o que talvez fosse o ponto central do aforismo, cujo título é "viva à física!". O que eu quero dizer é que, segundo me parece, o movimento argumentativo de Nietzsche no texto em questão sugere exatamente um deslocamento de perspectiva dessa natureza. Se este for o caso, o apelo a um rigorismo internalista não seria senão um dos momentos da crítica a Kant, momento que, por si, poderia ser sim entendido como um argumento ad hominem. Mas além desse ponto, haveria ainda uma crítica subentendida ao universalismo moral (que não coincide com a crítica à cegueira com relação ao afeto subjacente a esse princípio e, portanto, não depende necessariamente do argumento fenomenista), e ao hábito comum, associado a esse princípio, de julgar o valor moral da ação do outro segundo critérios e medidas individuais e particulares. Por sua vez, essa última crítica está em certa medida associada à premissa do fenomenismo, mas ela não parece depender necessariamente dela ou de critérios epistêmicos em geral, podendo ser justificada no fato de que o hábito em questão é um ataque ao bom gosto. Por fim, o apelo à física como condição para a criação de novos valores e ideais individuais e particulares (em oposição ao universalismo kantiano) revelaria que o último momento da crítica à ética kantiana nesse aforismo não é ad hominem e nem está associado a um rigorismo internalista, mas sim à possibilidade mencionada anteriormente de um uso normativo de modelos científicos exercendo uma certa função de "razão prática".

    Esse é mais um palpite, pra tentar salvar a perspectiva da "terceira pessoa" nesse aforismo, mas é de fato um ponto bastante problemático. Cabe perguntar ainda se a perspectiva da terceira pessoa não seria, em última instância, sempre tributária de uma perspectiva de primeira pessoa. No mais, a questão acerca do valor de verdade de juízos morais (em sentido rigoroso) é ainda mais cabeluda. Não é por acaso que uma grande parte dos textos de Nietzsche aponta pra algo como o amoralismo, como vc disse.

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  6. Olá William, mais uma vez obrigado pelo empenho em levar o debate adiante. Suas considerações apontam numa direção muito promissora, e creio que você está correto ao enfatizar a importância do título do aforismo 335 "Viva a física!". Eu vou me dedicar a reler o aforismo 335 e algumas outras ocorrências que podem iluminar a discussão. Confesso que meus preconceitos a favor do internalismo podem ter influenciado minha leitura de Nietzsche. Tenho imensa dificuldade em conceber que alguém pode estar racionalmente justificado sem ter acesso às razões que o colocam nesta situação epistêmica. Nietzsche tem tudo para ser um externalista, mas ao mesmo tempo ele tem formulações muito conservadoras que me impedem de atribuir a ele esta posição. Ao ler Nietzsche eu sou acometido com alguma frequencia pelo sentimento de que na sua obra convivem uma grande disposição para reformar nossas convicções morais e quase nenhuma disposição para rever nossos conceitos epistêmicos. E não raro a disposição para a reforma dos valores morais é justificada com base na defesa de valores epistêmicos bastante convencionais. Viva a física, mas viva sobretudo aquilo que nos compele a ela, nossa integridade intelectual. Este fechamento do aforismo 335 talvez comprove o que você diz sobre o virtuosismo com que Nietzsche transita do internalismo para o externalismo e vice-versa. Mas o apelo final é à integridade intelectual, uma virtude que certamente se formou a partir de mecanismos que escapam à inspeção e ao controle do agente, mas que uma vez instalada impõe que tudo seja submetido a esta inspeção cuidadosa, se você quiser, como um novo gosto ou uma nova idiossincracia ou uma nova paixão.

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  7. Vc tem toda razão, Rogério. O fechamento do aforismo traz a questão de volta para o âmbito do internalismo, o que de fato demonstra mais uma vez a destreza argumentativa de Nietzsche e comprova, quem sabe, a suspeita de que toda perspectiva de terceira pessoa é, em última instância, sempre tributária da perspectiva de primeira pessoa. O constante apelo à consciência intelectual é a marca crucial dessa tendência. E eu compartilho com vc a impressão de um Nietzsche epistemicamente ortodoxo, apesar dos malabarismos estéticos, estilísticos e os reformismos radicais no âmbito da moral (ou mais precisamente, como vc mencionou, esse ortodoxismo epistêmico é uma das razões centrais do reformismo moral, e também, acredito eu, dos malabarismos estéticos e estilísticos). Isso torna extremamente difícil a compreensão exata da hierarquia proposta por Nietzsche entre valores morais (e estéticos) e valores epistêmicos, que, se não me engano, foi o ponto central do seu post.

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  8. Olá, Rogério!

    Na verdade, não venho propor uma "solução" a nenhuma das duas propostas... Só uma observação.

    O seu post me levou a pensar no seguinte: pensar na possibilidade de Nietzsche submeter a consciência moral às exigências de uma consciência intelectual pode nos remeter à valorização que Nietzsche concede ao corpo, não acha? Sabemos que ele não estabelece uma distinção ou um distanciamento entre corpo e razão, ambos integram a mesma coisa. Além disso, Nietzsche também enxerga o corpo como o porpulsor de toda criação - incluíndo os valores que podem ser norteadores da ação.

    Ao ler o aforismo 335 da GC, vejo uma crítica pontual aos valores morais em virtude de sua exterioridade ao corpo, de sua "essência" que na verdade distancia o homem de si mesmo - o que me leva a recordar a segunda dissertação da GM, quando Nietzsche fala da má consciência como a interiorização do que está aquém da vida, tornando-a um problema, gerando um ranso entre a consciência e a natureza do corpo (seus impulsos, desejos, afecções, etc). Assim, a impressão que tive ao ler este aforismo da GC é que Nietzsche coloca a "força moral" como inversamente proporcional à "força corpórea", no sentido de que quanto menos o sujeito se apropria ou descobre a si mesmo, torna-se mais predisposto a adotar um juízo universal para si - sendo que para Nietzsche não há possibilidade das ações serem cometidas de uma única maneira, visto que da mesma forma que não sabemos "de onde vem" todos os impulsos e forças que movimentam nosso corpo, também não sabemos o que poderia ser a motivação de nossas ações. Aliás, parece-me que Nietzsche não se ocupou em encontrar tal motivação moral, mas em desmitifica-la como único "cão guia" de nossas ações: e nos oferece em troca a tutela sobre a criação de nossos valores e do nosso destino. Nesse sentido, creio que Nietzsche está chamando-nos a "ser físicos para sermos criadores" - de si mesmos!!

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  9. Olá Alexandra.
    Desculpe-me por reagir apenas tardiamente ao seu comentário. Estive um pouco distante da internet nos últimos dias e devo permanecer assim ainda por mais uma semana. Concordo com suas observações, que introduzem com muita pertinência um terceiro elemento em jogo e que não havia sido levado em conta nem por mim nem pelo William; trata-se do elemento estético, que em Nietzsche está sempre associado à dinâmica do corpo e da criação. Este elemento é importantíssimo na GC, pois é ele que permite uma moderação dos excessos a que o compromisso com a integridade intelectual pode conduzir. Nos póstumos desta fase é recorrente a preocupação de Nietzsche com a possibilidade de uma recaída na moral pela via da consciência intelectual: também o compromisso com a verdade pode gerar um tipo de fanatismo que Nietzsche quer evitar a todo custo mesmo no período intermediário. A consciência de que as virtudes intelectuais podem conter excessos e conduzir a uma hipertrofia e desequilíbrio prejudiciais à vida é uma constante em Nietzsche, embora nem sempre ela receba o mesmo destaque. Esta consciência é uma das marcas características da concepção nietzscheana das virtudes: contrariamente à concepção clássica, a aristotélica em especial, Nietzsche insiste na tese de que as virtudes comportam excessos e estão entre as grandes responsáveis pelo naufrágio dos indivíduos e dos povos.
    Talvez devessemos procurar uma solução para a primeira questão levantada pelo meu post original sobre Nietzsche e o kantismo, a questão da ética nietzscheana da crença em contraposição à ética kantiana, no início do aforismo 107 de GC, ou então em todo ele. Neste aforismo a arte não é apresentada como um novo organon da verdade, numa linha muito difundida por certa recepção nietzscheana, mas como uma potência que nos reconcilia com o erro e a ilusão, na medida em que nos restitui a boa consciência com a aparência. Neste sentido, ela é um contraponto aos excessos a que a consciência intelectual pode nos levar. Somente a arte nos permite ficar acima da moral, não com a rigidez típica de um estoico, mas com a leveza e o ar livremente zombeteiro de um Montaigne, que se permite flutuar e brincar acima dela, na atitude de quem está inteiramente reconciliado com a sua condição animal. Seria extremamente produtiva uma leitura comparativa dos aforismos 107 e 335 de GC, pois eles parecem devendar posições irreconciliáveis em relação ao ponto que deu início a esta discussão. No GC 107 Nietzsche afirma com todas as letras que só escapamos de uma recaída na moral na medida em que moderamos as exigências da integridade intelectual, e que isso só pode ser feito pelo aprendizado da arte, que nos reconcilia com as aparências. Em outras passagens, GC 2, por exemplo, e no GC 335, Nietzsche sugere uma interpretação rigorista do imperativo da consciência intelectual, como uma instância acima da consciência moral. Eu vislumbro duas vias que permitiriam tornar a posição de Nietzsche consistente: argumentar que a interpretação rigorista do imperativo da consciência intelectual proposta por Nietzsche é parte de uma argumentação ad hominem contra o rigorismo moral kantiano; ou desvincular inteiramente a figura da consciência intelectual, associando-a com um desdobramento da tradição luterano kantiana, da figura da integridade intelectual (Redlichkeit). Enquanto a primeira tende a um absolutismo e fanatismo típicos da consciência religiosa e moral, que ordena incondicionalmente (como o seu desdobramento último, que conduz tais figuras à sua autossupressão), a figura da integridade intelectual seria capaz de reconhecer o caráter relativo de suas exigências. Não sei se alguma destas vias é promissora, ou se elas são vias que se cruzam em algum ponto. Mas creio que a dificuldade é real e que vale a pena nos esclarecermos um pouco sobre ele.
    Isso como uma reação espontânea às suas considerações e à guisa de reconhecimento de que os valores estéticos têm um papel a cumprir nesta discussão, mas certamente não como um deus ex machina.

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