segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
domingo, 27 de fevereiro de 2011
Luto na cultura brasileira: morre Benedito Nunes
Segue o link para a matéria do portal de notícias ORM, assim como o link para a nota do JB.
Da série: Uma carta aos domingos
A carta de Nietzsche a Wagner, cuja tradução vem em seguida, é uma das mais importantes deste período da vida de Nietzsche. Isso porque ela foi escrita após uma das visitas que Nietzsche fez a Wagner em Bayreuth. Desta feita, próximo à Páscoa de 1873, em companhia de Erwin Rohde. Naquela ocasião, Nietzsche levou consigo um manuscrito, que leu para Wagner e Cosima: tratava-se de um novo livro, sobre os filósofos pré-platônicos. Wagner não gostou nada do que ouviu, pois as idéias de Nietzsche expressas neste novo livro contrariavam, frontalmente, aquelas que tinham sido expostas no Nascimento da Tragédia, dois anos antes e que tanto haviam contribuído para o “idílio de Tribschen”. Nenhuma valorização do mito, pelo contrário, Nietzsche interpretava os pré-platônicos a partir da ciência que lhe era contemporânea, atribuindo a esta um valor que o Nascimento da Tragédia havia recusado. O manuscrito já não continha mais nenhuma “metafísica de artista” e dessa maneira, não trazia nenhuma contribuição para a renovação da cultura que o programa wagneriano pregava. Em outras palavras, tratava-se de um Nietzsche, já neste momento e sem talvez que ele tivesse plena consciência disso, anti-Bayreuth.
Ora, mas o que lemos na carta de Nietzsche é um impressionante pedido de desculpas, uma ainda impressionante veneração a Wagner, um Nietzsche que se apresenta como um “discípulo” (Schüler) de pouca capacidade. O resultado: ele abandona a idéia de publicar o manuscrito e seguindo uma sugestão do próprio Wagner imediatamente iniciou a série das “Extemporâneas”, atacando justamente David Strauss, um dos opositores de Wagner. Ele pretendia ser livre e autônomo, mas tudo tinha sido em vão, escreve ele na carta. O livro sobre os pré-platônicos jamais foi publicado por Nietzsche. Deste material, além dos inúmeros fragmentos póstumos, conhecemos o manuscrito das “Preleções” sobre o assunto, ministradas na Universidade da Basiléia e o texto, mais conhecido, “A filosofia na época trágica dos gregos”, que não é uma pura e simples “cópia” das “Preleções”.
Para os que quiserem compreender mais ainda a importância estratégica desta carta, sugiro a leitura de Paolo D’Iorio, “L’image des philosophes preplatonicienes chez le jeune Nietzsche”. In: Borsche, T., Gerratana, F. und Venturelli, A. (Hrs.), ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 383-417. Paolo D’Iorio também publicou, na França, uma edição crítica das preleções de Nietzsche sobre os “filósofos pré-platônicos”. A tradução abaixo, ainda no estado de “caseira”, também está em discussão.
Ernani Chaves
Carta a Richard Wagner, em Bayreuth. (KSB, 4, pp. 144-145).
Basiléia, 18 de abril de 1873.
Honrabilíssimo Mestre,
Vivo pensando constantemente nos dias passados em Bayreuth e tudo que aprendi e vivenciei de novo lá em tão curto tempo se espraia diante de mim com plenitude cada vez maior. Se o senhor não pareceu satisfeito com minha presença, o compreendo muito bem, sem poder mudar alguma coisa, pois aprendo e percebo muito devagar e vivencio a cada momento ao seu lado algo sobre o qual jamais havia pensado e o meu desejo é fixá-lo em minha memória. Sei perfeitamente, caríssimo Mestre, que o senhor não pode descansar com uma visita assim, que por vezes deve ser insuportável. Desejei a mim mesmo, no mínimo, com muita freqüência, a aparência de uma grande liberdade e autonomia, mas foi em vão. Enfim, peço-lhe, tome-me apenas como discípulo, possivelmente com a pena na mão e o caderno diante de si, além disso, como discípulo com uma capacidade muito lenta e pouco versátil. É verdade que fico diariamente muito melancólico, quando sinto, com razão, o quanto gostaria de lhe ajudar em alguma coisa, de ser-lhe útil, e o quanto sou totalmente incapaz disso, de tal modo que possa contribuir, pelo menos uma vez, com algo para sua distração e entretenimento.
Ou, talvez, mais uma vez, se falasse que agora mesmo tenho entre as mãos um escrito contra o conhecido escritor David Strauss. Há pouco percorri o seu “antigas e novas crenças” e me admirei tanto da obtusidade e vulgaridade do autor, assim como do pensador. Uma bela coletânea de ensaios estilísticos do tipo mais abominável deve mostrar publicamente, o quanto isso diz respeito a esse pretenso “clássico”.
Em minha ausência, o escrito de Overbeck, meu companheiro de casa, “sobre a cristandade de nossa teologia”, ficou bem adiantado, ele tem um caráter bem ofensivo contra todos os partidos e é, por outro lado, tão irrefutável e tão sério, que ele também, após a publicação do livro deverá ser proscrito, como alguém que, segundo a expressão do Prof. Brockhausen, “arruinou sua carreira”. Pouco a pouco, a Basiléia torna-se, com razão, escandalosa.
domingo, 20 de fevereiro de 2011
Da série: pequenas traduções...
Nos trechos da correspondência selecionados abaixo chama atenção a influência programática exercida por F. A. Lange sobre o jovem Nietzsche, que se revela tanto em seu interesse por uma investigação científica das questões tradicionais da epistemologia, quanto na sua compreensão da natureza das convicções filosóficas, que neste momento ele parece situar no campo exclusivo da fabulação conceitual (Begriffsdichtung) para fins de edificação (Erbauung). Neste terreno, Nietzsche entende que o sucesso de um sistema filosófico não deve ser buscado em suas credenciais epistêmicas, mas em seu efeito terapêutico sobre o indivíduo. Esta convicção fornece um interessante contraponto à visão rigorista expressa por Nietzsche na descrição feita à irmã do seu entendimento dos compromissos essenciais que caracterizam o ethos da vida científica, pautada por uma consideração exclusiva da verdade e por uma impiedosa crítica de todas as crenças que não dispõem de evidência ou fundamentação. Aqui há uma primeira grande tensão na personalidade de Nietzsche, e a reconciliação, baseada na distinção de funções (cognitiva e edificante), é menos óbvia do que pode parecer à primeira vista. Creio que há pelo menos duas razões que farão com que esta reconciliação formal entre o compromisso com os valores epistêmicos (cultivados pela consciência intelectual) e o compromisso com os valores edificantes (associados à visão de mundo proposta pela filosofia) pareça artificial aos olhos de Nietzsche pouco tempo depois de sua formulação: (1) a forma de vida filosófica se define por algum tipo de compromisso com a integridade intelectual e com a busca da verdade, e não apenas pela busca individual da vida boa; (2) a responsabilidade filosófica não é apenas e fundamentalmente com o cultivo da vida boa individualmente concebida, mas com o destino da cultura. Esta responsabilidade pelo destino da cultura exige da metafísica que ela seja um discurso edificante e culturalmente persuasivo. Sua visão de mundo deve poder ser social ou culturalmente legitimada; há condições que devem ser levadas em conta para o aferimento do sucesso de uma filosofia como fabulação conceitual para fins de edificação que não se limitam aos seus efeitos sobre um indivíduo particular em sua relação com o mestre. Nietzsche toma consciência desta dimensão política da atividade filosófica em seu contato com Wagner e em sua adesão ao seu projeto de reforma da cultura. A frequentação do meio wagneriano faz vir à tona um outro traço de sua personalidade filosófica: seu destacado ativismo cultural, que na sua forma mais exacerbada se manifesta em termos de um verdadeiro platonismo político (cuja proposição básica encontra-se em Para Além de Bem e Mal, na tese de que todo autêntico filósofo é também legislador e que a ele cabe a responsabilidade pela definição da hierarquia de valores de uma época).
Nos trechos da correspondência abaixo, ainda está ausente este ímpeto intervencionista. A tensão entre efeito terapêutico do discurso edificante e o imperativo da consciência intelectual é igualmente ignorada por Nietzsche, em detrimento da consciência intelectual, ao que tudo indica. As dificuldades relativas às condições da exequibilidade prática do programa langeano de uma metafísica concebida como fabulação conceitual para fins edificantes só se tornarão visíveis na medida em que a tarefa da edificação for pensada como parte de um programa mais amplo de reforma da cultura, ou seja, somente após o encontro de Nietzsche com Wagner e de sua conversão ao seu ideário cultural.
Com vocês o jovem Nietzsche:
Carta enviada de Naumburg ao amigo Carl von Gersdorff em fins de agosto de 1866:
"[...] Devemos mencionar por fim Schopenhauer, a quem eu continuo aderindo com a mais irrestrita simpatia. O que ele representa para nós tornou-se realmente claro para mim apenas recentemente, e isso através de um escrito notável e muito instrutivo ao seu modo: História do Materialismo e Crítica de seu Significado para o Presente, de Fr. A. Lange, 1866. Estamos aqui diante de um cientista natural e um kantiano altamente esclarecido. Seus resultados podem ser resumidos nas três proposições seguintes:
1. o mundo sensível é o produto de nossa organização.
2. nossos órgãos visíveis (corporais) são, assim como todas as demais partes do mundo dos fenômenos, apenas imagens de um objeto desconhecido.
3. deste modo, nossa verdadeira organização permanece para nós tão desconhecida quanto as verdadeiras coisas externas. O que temos sempre diante de nós não é senão o produto de ambas.
Não apenas a verdadeira essência das coisas, a coisa em si, é desconhecida para nós; também seu conceito é nada mais nada menos que o último rebento de um contraste condicionado por nossa organização, do qual não sabemos se conserva algum significado fora de nossa experiência. Disso resulta, pensa Lange, que os filósofos não devem ser importunados na medida em que nos edificam. A arte é livre, também na região dos conceitos. Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro uma Madonna de Rafael?— Como você pode perceber, o nosso Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista crítico, ele se torna quase ainda mais valioso para nós. Se filosofia é arte, então que Haym se anule diante de Schopenhauer; se a filosofia deve edificar, então eu pelo menos não conheço nenhum filósofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer." [KSB, 2: pp. 159-160: nesta carta ao amigo von Gersdorff Nietzsche retoma com pequenas variações algumas das conseqüências filosóficas extraídas por Lange de sua própria narrativa e expostas na seção dedicada ao estudo do significado de Kant para o debate em torno do materialismo. Os trechos que foram retomados por Nietzsche encontram-se nas páginas 268-269 da primeira edição de sua obra História do Materialismo. As três proposições a que Nietzsche se refere são também do próprio Lange e encontram-se por sua vez na p. 493 da primeira Edição - disponível no Google.books aqui].
Carta enviada de Naumburg ao amigo Paul Deussen em Berlim, abril/maio de 1868:
"[...] Quem acompanha o curso das investigações pertinentes ao tema, especialmente da fisiologia desde Kant, não pode ter nenhuma dúvida de que aqueles limites [de nossas faculdades cognitivas, RL] foram constatados de forma tão segura e infalível que, exceto os teólogos, alguns professores de filosofia e o vulgo, ninguém mais tem ilusões quanto a isso. O reino da metafísica, por conseguinte a província da verdade “absoluta” foi inapelavelmente equiparada à poesia e à religião. Quem pretende saber algo deve se contentar agora com uma relatividade consciente do saber – como p. ex. todo cientista natural que faz jus ao nome. Para alguns homens a metafísica pertence ao domínio das necessidades espirituais [Gemüthsbedürfnisse], ela é essencialmente edificação. Por outro lado ela é arte, isto é, arte da ficção conceitual; deve-se observar, contudo, que a metafísica, seja enquanto religião, seja enquanto arte, nada tem a ver com o suposto 'verdadeiro em si ou ser em si'” (KSB, 2: p. 269).
Carta enviada de Naumburg ao amigo Paul Deussen em Berlim, outubro de 1867:
"[...] Meu caro amigo, para escrever uma apologia de Schopenhauer, tal como você me exorta a fazer em sua carta, tudo o que tenho a comunicar é que, após meus pés terem encontrado um solo firme, eu posso encarar esta vida de frente, de forma corajosa e livre. "A água do infortúnio", para dizê-lo figurativamente, já não me desvia de meu caminho, pois ela já não me atinge a cabeça.
Naturalmente, esta não é outra coisa senão uma apologia inteiramente individual. Mas este é o ponto em que nos encontramos. Eu sussurro no ouvido daquele que pretende refutar Schopenhauer com razões: “Mas meu caro, visões de mundo não são criadas nem destruídas pela lógica. Eu me sinto em casa nesta atmosfera e você naquela. Deixe que eu cuide de meu próprio nariz, assim como eu deixo que você cuide do seu.”
[...] se um escravo, estando na prisão, sonha ser livre e desobrigado de sua servidão, quem seria de coração tão duro a ponto de despertá-lo e dizer-lhe que se trata de um sonho? Quem o seria?...
Sentir-se um com um grande espírito, poder seguir sintonizado o curso de suas idéias, ter encontrado uma pátria do pensamento, um refúgio para horas de aflição, isso é o que temos de melhor – isso nós não queremos roubar dos outros, nem tampouco deixar que o roubem de nós. Seja isso um erro, seja uma mentira – " (KSB, 2: p. 229).
Carta enviada de Leizpig ao amigo Paul Deussen em Oberdreis, outubro de 1868:
"[...] Ao remeter à conclusão de sua carta aproveito para tratar da proposta que me é feita lá. Caro amigo, “escrever bem” (caso eu mereça esse elogio: nego ac pernego) na verdade não autoriza alguém a escrever uma crítica do sistema schopenhaueriano: de resto, você não pode fazer a menor idéia do respeito que eu tenho por este “gênio de primeira categoria” caso atribua a mim (i. e. homini pusillullullo!) a capacidade de atirar às traças este gigante: pois espero que você entenda por uma crítica do sistema schopenhaueriano algo mais do que um mero chamar a atenção para passagens defeituosas, demonstrações malogradas e inabilidades táticas. Quanto a isso certo demasiado ousado Überweg e um Haym que na filosofia não está nada em casa crêem já terem resolvido tudo. Não se escreve em absoluto a crítica de uma visão de mundo: ela pode ser compreendida ou não, uma terceira perspectiva me é incompreensível. Aquele que não sente o odor de uma rosa não está autorizado a lhe fazer a crítica: e se ele o sente, à la bonheur! Pois ele perde com isso a vontade de criticar..." (KSB, 2: p. 328).
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
Da série: pequenas traduções que ocasionem grandes discussões
Carta a Elisabeth Nietzsche em Colditz.
Bonn, no domingo seguinte à festa de Pentecostes (11 de junho de 1865)
Querida Lisbeth,
Depois de uma carta tão graciosa e entretecida de poemas juvenis como a última que eu recebi de ti, seria injusto e ingrato deixá-la esperando ainda mais tempo por uma resposta; principalmente porque desta vez eu disponho de um rico material e é com grande satisfação que “rumino” no espírito a alegria desfrutada.
[...] No que diz respeito ao seu princípio de que o verdadeiro está sempre do lado do mais difícil, eu o concedo a você em parte. Contudo, é difícil conceber que 2 x 2 não seja 4; ele se torna por isso mais verdadeiro?
Por outro lado, é realmente tão difícil simplesmente aceitar tudo aquilo que nos foi ensinado e que aos poucos adquiriu raízes profundas, tudo aquilo que vale como verdade no círculo dos familiares e de tantos homens de bem e que, além disso, consola e enaltece efetivamente os homens? Tudo isso é mais difícil do que trilhar novos caminhos, em luta contra o hábito, na insegurança de seguir com independência, sob as constantes oscilações do ânimo e mesmo da consciência, frequentemente sem qualquer consolo, mas sempre com o perene objetivo do verdadeiro, do belo e do bom?
Trata-se então de obter aquela visão de Deus, mundo e reconciliação que nos faça sentir mais confortáveis? Para o autêntico pesquisador não seria, antes pelo contrário, inteiramente indiferente o resultado de sua investigação? Ao investigarmos estamos, por acaso, à procura de tranqüilidade, paz, felicidade? Não, apenas a verdade, ainda que ela seja repulsiva e feia no mais alto grau.
Ainda uma última questão: se nós tivéssemos acreditado desde a infância que toda salvação da alma provém de outra pessoa que não Jesus, de Maomé, por exemplo; não é certo que teríamos vivenciado as mesmas bênçãos? É certo que apenas a fé abençoa, não aquilo que de objetivo se encontra por trás da fé. Eu te digo isso, querida Lisbeth, apenas para confrontar os meios de prova mais usuais dos crentes, que apelam para suas experiências interiores e extraem delas o caráter indisputável de sua crença. Toda verdadeira crença é também indisputável, [pois] ela supre aquilo que a pessoa que tem a crença espera encontrar nela; mas a crença não oferece o menor suporte para a fundamentação de uma verdade objetiva.
É aqui então que os caminhos dos homens se separam; se você quer aspirar à tranqüilidade da alma e à felicidade, então creia; se você quer ser um discípulo da verdade, então investigue.
Entre estes extremos há uma quantidade de pontos de vista intermediários. Trata-se, contudo, do fim principal. [...] (Carta de número 469, tradução parcial a partir de KSB, 2: pp. 60-61).