A carta de Nietzsche a Wagner, cuja tradução vem em seguida, é uma das mais importantes deste período da vida de Nietzsche. Isso porque ela foi escrita após uma das visitas que Nietzsche fez a Wagner em Bayreuth. Desta feita, próximo à Páscoa de 1873, em companhia de Erwin Rohde. Naquela ocasião, Nietzsche levou consigo um manuscrito, que leu para Wagner e Cosima: tratava-se de um novo livro, sobre os filósofos pré-platônicos. Wagner não gostou nada do que ouviu, pois as idéias de Nietzsche expressas neste novo livro contrariavam, frontalmente, aquelas que tinham sido expostas no Nascimento da Tragédia, dois anos antes e que tanto haviam contribuído para o “idílio de Tribschen”. Nenhuma valorização do mito, pelo contrário, Nietzsche interpretava os pré-platônicos a partir da ciência que lhe era contemporânea, atribuindo a esta um valor que o Nascimento da Tragédia havia recusado. O manuscrito já não continha mais nenhuma “metafísica de artista” e dessa maneira, não trazia nenhuma contribuição para a renovação da cultura que o programa wagneriano pregava. Em outras palavras, tratava-se de um Nietzsche, já neste momento e sem talvez que ele tivesse plena consciência disso, anti-Bayreuth.
Ora, mas o que lemos na carta de Nietzsche é um impressionante pedido de desculpas, uma ainda impressionante veneração a Wagner, um Nietzsche que se apresenta como um “discípulo” (Schüler) de pouca capacidade. O resultado: ele abandona a idéia de publicar o manuscrito e seguindo uma sugestão do próprio Wagner imediatamente iniciou a série das “Extemporâneas”, atacando justamente David Strauss, um dos opositores de Wagner. Ele pretendia ser livre e autônomo, mas tudo tinha sido em vão, escreve ele na carta. O livro sobre os pré-platônicos jamais foi publicado por Nietzsche. Deste material, além dos inúmeros fragmentos póstumos, conhecemos o manuscrito das “Preleções” sobre o assunto, ministradas na Universidade da Basiléia e o texto, mais conhecido, “A filosofia na época trágica dos gregos”, que não é uma pura e simples “cópia” das “Preleções”.
Para os que quiserem compreender mais ainda a importância estratégica desta carta, sugiro a leitura de Paolo D’Iorio, “L’image des philosophes preplatonicienes chez le jeune Nietzsche”. In: Borsche, T., Gerratana, F. und Venturelli, A. (Hrs.), ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 383-417. Paolo D’Iorio também publicou, na França, uma edição crítica das preleções de Nietzsche sobre os “filósofos pré-platônicos”. A tradução abaixo, ainda no estado de “caseira”, também está em discussão.
Ernani Chaves
Carta a Richard Wagner, em Bayreuth. (KSB, 4, pp. 144-145).
Basiléia, 18 de abril de 1873.
Honrabilíssimo Mestre,
Vivo pensando constantemente nos dias passados em Bayreuth e tudo que aprendi e vivenciei de novo lá em tão curto tempo se espraia diante de mim com plenitude cada vez maior. Se o senhor não pareceu satisfeito com minha presença, o compreendo muito bem, sem poder mudar alguma coisa, pois aprendo e percebo muito devagar e vivencio a cada momento ao seu lado algo sobre o qual jamais havia pensado e o meu desejo é fixá-lo em minha memória. Sei perfeitamente, caríssimo Mestre, que o senhor não pode descansar com uma visita assim, que por vezes deve ser insuportável. Desejei a mim mesmo, no mínimo, com muita freqüência, a aparência de uma grande liberdade e autonomia, mas foi em vão. Enfim, peço-lhe, tome-me apenas como discípulo, possivelmente com a pena na mão e o caderno diante de si, além disso, como discípulo com uma capacidade muito lenta e pouco versátil. É verdade que fico diariamente muito melancólico, quando sinto, com razão, o quanto gostaria de lhe ajudar em alguma coisa, de ser-lhe útil, e o quanto sou totalmente incapaz disso, de tal modo que possa contribuir, pelo menos uma vez, com algo para sua distração e entretenimento.
Ou, talvez, mais uma vez, se falasse que agora mesmo tenho entre as mãos um escrito contra o conhecido escritor David Strauss. Há pouco percorri o seu “antigas e novas crenças” e me admirei tanto da obtusidade e vulgaridade do autor, assim como do pensador. Uma bela coletânea de ensaios estilísticos do tipo mais abominável deve mostrar publicamente, o quanto isso diz respeito a esse pretenso “clássico”.
Em minha ausência, o escrito de Overbeck, meu companheiro de casa, “sobre a cristandade de nossa teologia”, ficou bem adiantado, ele tem um caráter bem ofensivo contra todos os partidos e é, por outro lado, tão irrefutável e tão sério, que ele também, após a publicação do livro deverá ser proscrito, como alguém que, segundo a expressão do Prof. Brockhausen, “arruinou sua carreira”. Pouco a pouco, a Basiléia torna-se, com razão, escandalosa.