domingo, 20 de fevereiro de 2011

Da série: pequenas traduções...

Dando prosseguimento à ideia de postar traduções de trechos da correspondência de Nietzsche que sejam representativos de seu percurso filosófico e de sua personalidade intelectual, tomo a liberdade de me antecipar ao post do prof. Ernani Chaves e expor à apreciação dos leitores trechos de algumas cartas escritas por Nietzsche entre agosto de 1866 e outubro de 1868. Boa parte de sua formação acadêmica ocorreu neste período; estes foram os anos em que Nietzsche adquiriu, se não a sensibilidade, certamente a habilidade técnica para o exercício profissional da filologia clássica. Incentivado por seu mestre Ritschl, Nietzsche funda, juntamente com alguns colegas, uma sociedade filológica que se reúne com grande assiduidade para discutir seus primeiros ensaios filológicos. Nietzsche se destaca no campo da pseudoepigrafia (um conjunto de técnicas filológicas para a detecção de falsas atribuições de autoria nos textos legados pela tradição) e faz neste domínio o seu primeiro grande aprendizado da arte da suspeita, que vai culiminar no seu ensaio sobre as fontes de Diogenes Laércio, estudo que vale a ele a indicação precoce para a Cátedra da Universade de Basel. Dois eventos marcam simbolicamente o término deste período de formação: seu encontro pessoal com Richard Wagner em Leipzig (novembro de 1868) e a referida designação para a Cátedra de Filologia Clássica na Universidade de Basel (em fevereiro de 1869). Embora Nietzsche se ocupe academicamente de filologia clássica, parte significativa de sua correspondência neste período testemunha o seu interesse crescente por questões relacionadas à filosofia (seu primeiro encontro com a obra de Schopenhauer teria ocorrido casualmente em outubro de 1865) e às ciências naturais (despertada ou intensificada pela leitura de F. A. Lange ainda na primeira metade de 1866) e ao entrecruzamento entre estas duas atividades.
Nos trechos da correspondência selecionados abaixo chama atenção a influência programática exercida por F. A. Lange sobre o jovem Nietzsche, que se revela tanto em seu interesse por uma investigação científica das questões tradicionais da epistemologia, quanto na sua compreensão da natureza das convicções filosóficas, que neste momento ele parece situar no campo exclusivo da fabulação conceitual (Begriffsdichtung) para fins de edificação (Erbauung). Neste terreno, Nietzsche entende que o sucesso de um sistema filosófico não deve ser buscado em suas credenciais epistêmicas, mas em seu efeito terapêutico sobre o indivíduo. Esta convicção fornece um interessante contraponto à visão rigorista expressa por Nietzsche na descrição feita à irmã do seu entendimento dos compromissos essenciais que caracterizam o ethos da vida científica, pautada por uma consideração exclusiva da verdade e por uma impiedosa crítica de todas as crenças que não dispõem de evidência ou fundamentação. Aqui há uma primeira grande tensão na personalidade de Nietzsche, e a reconciliação, baseada na distinção de funções (cognitiva e edificante), é menos óbvia do que pode parecer à primeira vista. Creio que há pelo menos duas razões que farão com que esta reconciliação formal entre o compromisso com os valores epistêmicos (cultivados pela consciência intelectual) e o compromisso com os valores edificantes (associados à visão de mundo proposta pela filosofia) pareça artificial aos olhos de Nietzsche pouco tempo depois de sua formulação: (1) a forma de vida filosófica se define por algum tipo de compromisso com a integridade intelectual e com a busca da verdade, e não apenas pela busca individual da vida boa; (2) a responsabilidade filosófica não é apenas e fundamentalmente com o cultivo da vida boa individualmente concebida, mas com o destino da cultura. Esta responsabilidade pelo destino da cultura exige da metafísica que ela seja um discurso edificante e culturalmente persuasivo. Sua visão de mundo deve poder ser social ou culturalmente legitimada; há condições que devem ser levadas em conta para o aferimento do sucesso de uma filosofia como fabulação conceitual para fins de edificação que não se limitam aos seus efeitos sobre um indivíduo particular em sua relação com o mestre. Nietzsche toma consciência desta dimensão política da atividade filosófica em seu contato com Wagner e em sua adesão ao seu projeto de reforma da cultura. A frequentação do meio wagneriano faz vir à tona um outro traço de sua personalidade filosófica: seu destacado ativismo cultural, que na sua forma mais exacerbada se manifesta em termos de um verdadeiro platonismo político (cuja proposição básica encontra-se em Para Além de Bem e Mal, na tese de que todo autêntico filósofo é também legislador e que a ele cabe a responsabilidade pela definição da hierarquia de valores de uma época).
Nos trechos da correspondência abaixo, ainda está ausente este ímpeto intervencionista. A tensão entre efeito terapêutico do discurso edificante e o imperativo da consciência intelectual é igualmente ignorada por Nietzsche, em detrimento da consciência intelectual, ao que tudo indica. As dificuldades relativas às condições da exequibilidade prática do programa langeano de uma metafísica concebida como fabulação conceitual para fins edificantes só se tornarão visíveis na medida em que a tarefa da edificação for pensada como parte de um programa mais amplo de reforma da cultura, ou seja, somente após o encontro de Nietzsche com Wagner e de sua conversão ao seu ideário cultural.
Com vocês o jovem Nietzsche:


Carta enviada de Naumburg ao amigo Carl von Gersdorff em fins de agosto de 1866:
"[...] Devemos mencionar por fim Schopenhauer, a quem eu continuo aderindo com a mais irrestrita simpatia. O que ele representa para nós tornou-se realmente claro para mim apenas recentemente, e isso através de um escrito notável e muito instrutivo ao seu modo: História do Materialismo e Crítica de seu Significado para o Presente, de Fr. A. Lange, 1866. Estamos aqui diante de um cientista natural e um kantiano altamente esclarecido. Seus resultados podem ser resumidos nas três proposições seguintes:
1. o mundo sensível é o produto de nossa organização.
2. nossos órgãos visíveis (corporais) são, assim como todas as demais partes do mundo dos fenômenos, apenas imagens de um objeto desconhecido.
3. deste modo, nossa verdadeira organização permanece para nós tão desconhecida quanto as verdadeiras coisas externas. O que temos sempre diante de nós não é senão o produto de ambas.

Não
apenas a verdadeira essência das coisas, a coisa em si, é desconhecida para nós; também seu conceito é nada mais nada menos que o último rebento de um contraste condicionado por nossa organização, do qual não sabemos se conserva algum significado fora de nossa experiência. Disso resulta, pensa Lange, que os filósofos não devem ser importunados na medida em que nos edificam. A arte é livre, também na região dos conceitos. Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro uma Madonna de Rafael?— Como você pode perceber, o nosso Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista crítico, ele se torna quase ainda mais valioso para nós. Se filosofia é arte, então que Haym se anule diante de Schopenhauer; se a filosofia deve edificar, então eu pelo menos não conheço nenhum filósofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer." [KSB, 2: pp. 159-160: nesta carta ao amigo von Gersdorff Nietzsche retoma com pequenas variações algumas das conseqüências filosóficas extraídas por Lange de sua própria narrativa e expostas na seção dedicada ao estudo do significado de Kant para o debate em torno do materialismo. Os trechos que foram retomados por Nietzsche encontram-se nas páginas 268-269 da primeira edição de sua obra História do Materialismo. As três proposições a que Nietzsche se refere são também do próprio Lange e encontram-se por sua vez na p. 493 da primeira Edição - disponível no Google.books aqui].



Carta enviada de Naumburg ao amigo Paul Deussen em Berlim, abril/maio de 1868:
"[...] Quem acompanha o curso das investigações pertinentes ao tema, especialmente da fisiologia desde Kant, não pode ter nenhuma dúvida de que aqueles limites [de nossas faculdades cognitivas, RL] foram constatados de forma tão segura e infalível que, exceto os teólogos, alguns professores de filosofia e o vulgo, ninguém mais tem ilusões quanto a isso. O reino da metafísica, por conseguinte a província da verdade “absoluta” foi inapelavelmente equiparada à poesia e à religião. Quem pretende saber algo deve se contentar agora com uma relatividade consciente do saber – como p. ex. todo cientista natural que faz jus ao nome. Para alguns homens a metafísica pertence ao domínio das necessidades espirituais [Gemüthsbedürfnisse], ela é essencialmente edificação. Por outro lado ela é arte, isto é, arte da ficção conceitual; deve-se observar, contudo, que a metafísica, seja enquanto religião, seja enquanto arte, nada tem a ver com o suposto 'verdadeiro em si ou ser em si'” (KSB, 2: p. 269).



Carta enviada de Naumburg ao amigo Paul Deussen em Berlim, outubro de 1867:
"[...] Meu caro amigo, para escrever uma apologia de Schopenhauer, tal como você me exorta a fazer em sua carta, tudo o que tenho a comunicar é que, após meus pés terem encontrado um solo firme, eu posso encarar esta vida de frente, de forma corajosa e livre. "A água do infortúnio", para dizê-lo figurativamente, já não me desvia de meu caminho, pois ela já não me atinge a cabeça.
Naturalmente, esta não é outra coisa senão uma apologia inteiramente individual. Mas este é o ponto em que nos encontramos. Eu sussurro no ouvido daquele que pretende refutar Schopenhauer com razões: “Mas meu caro, visões de mundo não são criadas nem destruídas pela lógica. Eu me sinto em casa nesta atmosfera e você naquela. Deixe que eu cuide de meu próprio nariz, assim como eu deixo que você cuide do seu.”

[...] se um escravo, estando na prisão, sonha ser livre e desobrigado de sua servidão, quem seria de coração tão duro a ponto de despertá-lo e dizer-lhe que se trata de um sonho? Quem o seria?...

Sentir-se um com um grande espírito, poder seguir sintonizado o curso de suas idéias, ter encontrado uma pátria do pensamento, um refúgio para horas de aflição, isso é o que temos de melhor – isso nós não queremos roubar dos outros, nem tampouco deixar que o roubem de nós. Seja isso um erro, seja uma mentira – " (KSB, 2: p. 229).



Carta enviada de Leizpig ao amigo Paul Deussen em Oberdreis, outubro de 1868
:
"[...] Ao remeter à conclusão de sua carta aproveito para tratar da proposta que me é feita lá. Caro amigo, “escrever bem” (caso eu mereça esse elogio: nego ac pernego) na verdade não autoriza alguém a escrever uma crítica do sistema schopenhaueriano: de resto, você não pode fazer a menor idéia do respeito que eu tenho por este “gênio de primeira categoria” caso atribua a mim (i. e. homini pusillullullo!) a capacidade de atirar às traças este gigante: pois espero que você entenda por uma crítica do sistema schopenhaueriano algo mais do que um mero chamar a atenção para passagens defeituosas, demonstrações malogradas e inabilidades táticas. Quanto a isso certo demasiado ousado Überweg e um Haym que na filosofia não está nada em casa crêem já terem resolvido tudo. Não se escreve em absoluto a crítica de uma visão de mundo: ela pode ser compreendida ou não, uma terceira perspectiva me é incompreensível. Aquele que não sente o odor de uma rosa não está autorizado a lhe fazer a crítica: e se ele o sente, à la bonheur! Pois ele perde com isso a vontade de criticar..." (KSB, 2: p. 328).




0 comentários:

Postar um comentário