domingo, 27 de março de 2011

Da série: uma carta aos domingos

Escolhi para este domingo dois trechos da correspondência do ano de 1871. O primeiro trecho é menos significativo, mas documenta a reação imediata de Nietzsche à falsa notícia de que os revoltosos da Comuna de Paris haviam incendiado o Louvre em 24 de maio de 1871. A carta é dirigida ao Conselheiro Wilhelm Vischer, da Universidade de Basel, e Nietzsche a escreve com o propósito de se justificar por não ter estado presente à sessão de conferência do Paedagogium (espécie de curso de segundo grau ou Liceu ligado à Universidade e no qual Nietzsche teve uma participação muito ativa como professor, sendo muito querido entre os estudantes). O segundo trecho é de uma carta enviada por Nietzsche ao amigo Carl von Gersdorff após o seu retorno da guerra franco-prussiana. Nela Nietzsche retoma, quase um mês depois, o tema da carta a Vischer: o efeito devastador que a notícia do incêndio do Louvre causou sobre ele. Mas antes de descrever este evento, caracterizando-o como o evento mais revelador do embate trágico e dos custos da cultura, Nietzsche comunica ao amigo algumas de suas impressões mais imediatas da guerra franco-prussiana. É importante notar que neste momento Nietzsche ainda não temia os seus efeitos negativos sobre a cultura alemã. Este diagnóstico surgirá por ocasião das Considerações Extemporâneas (Na Consideração Extemporânea sobre a história este diagnóstico já se converteu em uma certeza e o tom predominante é amargo e desesperançado). Mas em 1871 Nietzsche se deixa contaminar pelo ufanismo da vitória militar recente, embora seja lúcido o suficiente para enfatizar que as virtudes germânicas que se tornaram visíveis durante o conflito bélico devem ser canalizadas para as tarefas que realmente interessam, quais sejam, as tarefas da cultura, que só podem se impor em tempos de paz. Neste sentido, o primeiro parágrafo da carta de Nietzsche a Gersdorff é quase uma convocatória para que o amigo retome esta tarefa da cultura. A esperança de Nietzsche em uma renovação da cultura alemã, que está bastante presente na primeira metade dos anos 70, tem uma conexão importante com os fatos da guerra franco-prussiana: Nietzsche cultiva a esperança de que as virtudes militares possam ser de fato canalizadas e transferidas para os combates no terreno da cultura. Seu grande temor é que o estado monopolize esta grande energia liberada por ocasião dos eventos bélicos. Aqui, como em outros momentos da obra de Nietzsche, o pior equívoco interpretativo consiste em tomar a letra do texto (ou menos do que a letra) e propor uma leitura política do filósofo, quando o que de fato ocorre é uma tentativa desesperada de atuar no sentido de desviar para a cultura aquelas energias que tendem a se descarregar no campo do político.
Por fim, um último comentário. A oposição de Nietzsche ao socialismo, que perdura ao longo de toda a sua obra, tem aqui a sua primeira expressão literária. O filósofo jamais se libertará da convicção de que as reivindicações de igualdade e de justiça social que caracterizam os movimentos de emancipação da classe trabalhadora na segunda metade do século XIX na Europa possam se compatíveis com o engajamento que ele julga necessário para a existência de uma verdadeira cultura. Embora a notícia do incêndio do Louvre fosse falsa, e Nietzsche demorou algum tempo para descobrir isso, ela no entanto sinalizava para uma possibilidade que, aos olhos do filósofo, era dramaticamente concreta. Este temor, em parte justificado, em parte irracional, contribui em alguma medida para fixar a referida convicção de que haveria uma oposição entre o movimento socialista e o engajamento em prol da cultura. Mas ele não pode, por si só, explicar o fato de que Nietzsche tenha chegado a considerar esta oposição uma oposição de princípio. Outras razões devem tê-lo levado a esta conclusão extrema. Sobre isso falaremos em outra ocasião.
Um bom domingo para todos. Com vocês um Nietzsche algo histérico, mas nem por isso menos comovente.

Carta de Nietzsche ao conselheiro Wilhelm Vischer (-Bilfinger) em Basel, datada de 27 de maio de 1871.

Tenho que me desculpar muitíssimo por não ter estado presente ontem à sessão da conferência do Instituto; por um acaso o convite para a sessão só me chegou às mãos uma hora depois de iniciada, quando já era tarde demais.

As notícias dos últimos dias foram tão terríveis que eu não chego a recobrar uma disposição de espírito ao menos passável. O que é um erudito face a tais terremotos da cultura! Quão atomizado nos sentimos! Empregamos toda a nossa vida e as nossas melhores energias para compreender e explicar melhor a cultura de uma época; de que vale esta profissão se um único e mísero dia reduz a cinzas os mais preciosos documentos de tais épocas! Este é o pior dia de minha vida. – [...]


Carta enviada de Basel a Carl von Gersdorff em Marienbad, datada de 21 de junho de 1871.


Meu caro, querido amigo,

Então eis que estás de volta ao lar, e para a minha alegria salvo e integer (intacto) após colossais perigos. Enfim podes de novo pensar em ocupações e tarefas pacíficas e considerar os temíveis episódios de guerra como um sonho sério, mas já desvanecido em sua vida. Agora novos deveres se anunciam; e se agora, em tempos de paz, alguma coisa nos deve ficar daquele selvagem jogo de guerra, será o espírito heróico e ao mesmo tempo sensato que eu, para a minha surpresa, e ao modo de uma bela e inesperada descoberta, encontrei fresco e vigoroso em nosso exército, na velha saúde germânica. Sobre isso é possível edificar; é permitido uma vez mais ter esperanças! Nossa missão germânica ainda não se esgotou! Me sinto mais encorajado que nunca; pois nem tudo se perdeu na superficialidade e “elegância” judaico-francesa e na sôfrega agitação do “tempo presente”. Com efeito, ainda há coragem, mais precisamente coragem germânica, que é interiormente algo distinta do élan de nossos lastimáveis vizinhos.

O que nos causou espanto, para além da luta das nações, foi a cabeça de hidra internacional que veio à luz subitamente e de forma tão terrível, como sinal de lutas futuras inteiramente distintas. Se pudéssemos conversar pessoalmente, nós com certeza concordaríamos acerca de em que medida precisamente neste fenômeno a nossa vida moderna e, de modo geral, toda a velha Europa cristã e seu estado, mas sobretudo a “civilização” romana, que agora se tornou dominante em toda parte, revelam o enorme mal inerente ao nosso mundo; concordaríamos acerca de em que medida todos nós, com todo o nosso passado, somos culpados pelos horrores que vieram à luz; de tal modo que precisamos evitar ao máximo querer imputar, com elevada presunção, somente àqueles desafortunados o crime de lutar contra a cultura. Quando tomei conhecimento do incêndio de Paris, fiquei durante alguns dias inteiramente arrasado e desfeito em lágrimas e dúvidas; se um único dia bastava para suprimir as mais esplêndidas obras de arte e até mesmo épocas inteiras da arte, então toda a existência dedicada à arte, à filosofia e à ciência me pareciam um absurdo; eu me apeguei com séria convicção ao valor metafísico da arte, que não pode existir em razão dos míseros seres humanos, tendo antes uma missão mais elevada a cumprir. Mas mesmo na dor mais intensa não fui capaz de atirar uma única pedra àqueles sacrílegos, que para mim eram apenas os portadores de uma culpa universal, sobre a qual há muito o que pensar! – [...]



segunda-feira, 21 de março de 2011

Grupo de Leituras Nietzsche

Mestrandos e doutorandos do programa de pós-graduação em Filosofia da UFMG que desenvolvem pesquisa em Nietzsche coordenarão a partir deste semestre oficinas regulares de leitura dos textos do filósofo para estudantes da graduação. O grupo de leituras Nietzsche é uma iniciativa do Grupo Nietzsche da UFMG. Segue abaixo o convite para a primeira reunião.

O Grupo Nietzsche da UFMG convida os alunos de graduação que estudam ou desejam estudar a obra de Friedrich Nietzsche para a primeira reunião do Grupo de Leituras Nietzsche, que acontecerá no dia 29 de Março, em sala da FAFICH a ser definida, às 14 horas. O objetivo desta reunião é promover o encontro entre os estudantes e o mapeamento de seus interesses pelo pensamento nietzschiano, além de apresentar as diferentes fases de sua obra, suas principais questões e motivações, e a fortuna do pensamento desse fascinante filósofo na pesquisa acadêmica.
Leituras Nietzsche
GRUPO DE ESTUDOS
TERÇA - FEIRA - 14hs
A partir de 29/03
Contato: grupodeleiturasnietzsche@yahoogrupos.com.br

domingo, 20 de março de 2011

Nietzsche e o darwinismo: um ótimo tema para a retomada dos trabalhos

O Grupo Nietzsche da UFMG retomou seus trabalhos na sexta retrasada. Nosso primeiro encontro no semestre contou com a visita do prof. André Luis Mota Itaparica, da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia). O prof. André Itaparica aceitou gentilmente nosso convite para discutir um artigo inédito de sua autoria sobre Nietzsche e o darwinismo, e ele o fez em pleno recesso de carnaval, razão pela qual o grupo lhe é duplamente grato. O artigo do prof. André sairá em breve em uma coletânea que reunirá as contribuições da sexta e mais recente edição do Assim falou Nietzsche, dedicada ao tema "Nietzsche e as ciências". O encontro aconteceu na Unirio, em novembro de 2009. A coletânea será editada pelo prof. Miguel Angel de Barrenechea e, caso não ocorra nenhum imprevisto, faremos o seu lançamento acadêmico em maio na UFMG.
Eu tomo a liberdade de reproduzir os dois primeiros parágrafos do artigo do André, que oferecem uma síntese das principais teses exploradas por ele e discutidas pelo grupo na tarde de sexta:

"Pode-se resumir a relação entre os pensamentos de Nietzsche e Darwin da seguinte maneira: Nietzsche compartilha com Darwin o projeto de uma naturalização da moral; afora esse ponto em comum, encontramos em Nietzsche uma recusa do darwinismo, que, como já se observou, ecoa a recepção de Darwin na Alemanha. Exemplo maior desse repúdio, no que diz respeito à moral, pode ser encontrado na Genealogia da moral, cujo alvo é a versão de Paul Rée das teses darwinistas. Entretanto, a força das objeções de Nietzsche a Darwin deve-se sobretudo à inclusão de Darwin no contexto de sua crítica geral à moral cristã, já que, no que diz respeito às suas críticas pontuais à teoria da evolução pela seleção natural, sua posição apresenta fragilidades, por revelar problemas de interpretação da teoria de Darwin, particularmente na compreensão de temas como a luta pela sobrevivência (struggle for existence), a teleologia e a sobrevivência dos mais aptos. Apresentaremos neste texto as críticas de Nietzsche, seus limites e acertos."

"A principal crítica de Nietzsche a Darwin baseia-se na compreensão de que o conceito central da teoria da evolução pela seleção natural seja o de luta pela sobrevivência. Entendida como principal causa para o surgimento das variações, ela promoveria, segundo a leitura de Nietzsche do darwinismo, a permanência e consequente descendência dos mais fortes, que passariam para a prole suas características. O ataque de Nietzsche a essa versão da seleção natural apresenta argumentos que chegam às seguintes conclusões: (2.1) A luta pela sobrevivência é uma exceção; (2.2) A vida caracteriza-se pela vontade de potência; (2.3) Não há teleologia no mundo orgânico; (2.4) A tese darwinista é produto da moral cristã." (André Itaparica. Darwin e Nietzsche: Natureza e Moralidade)


Nietzsche procurou submeter o darwinismo, pelo qual ele nutria sincera admiração enquanto um dos principais acontecimentos científicos de seu século, a duas sortes de subordinação. Ambos os movimentos podem ser ilustrados por duas passagens do Livro V de Gaia Ciência. No aforismo 349, intitulado "Ainda a procedência dos eruditos", Nietzsche afirma que ênfase darwiniana na "doutrina incompreensivelmente unilateral da 'luta pela existência'" é tributária do princípio spinozano da autoconservação; no aforismo 357, intitulado "Acerca do velho problema: 'O que é alemão?'", o alvo é a própria noção de evolução, que Nietzsche considera tributária do hegelianismo e como uma das provas do triunfo de Hegel sobre o século XIX. Ele encerra a sua sugestão com a notável formulação: "pois sem Hegel não haveria Darwin". Com isso Nietzsche não está sugerindo que Hegel forneceu inspiração direta para as ideias de Darwin, mas que o hegelianismo preparou os espíritos para a aceitação do darwinismo, ao modo de uma transição sem sobressaltos. Esta dupla subordinação do científico ao filosófico e a tendência a discutir o darwinismo ora em termos muito abstratos (questionando suas suposições mais elementares), ora em termos de suas implicações morais torna árdua a tarefa do intérprete de Nietzsche quando este se vê na necessidade de responder à questão aparentemente banal de em que medida o filósofo alemão compreendeu corretamente as posições de Darwin. Esta questão deveria ser decidida previamente, antes que pudessemos passar à avaliação da pertinência das críticas que Nietzsche dirige ao darwinismo. O prof. André Itaparica se alinha à tese que poderíamos chamar de hegemônica entre os intérpretes de Nietzsche. Esta tese afirma que Nietzsche não teve uma compreensão satisfatória das posições de Darwin, e que isso pode ser depreendido do tipo de crítica que ele formula contra estas posições, além de ser corroborada pelo fato de Nietzsche não ter tido quase nenhum contato direto com a obra de Darwin, se é que teve algum, e se informado sobre suas posições através, principalmente, da recepção alemã: F. A. Lange, E. von Hartmann, Rütimeyer, Haeckel, Nägeli, Roux, Rolph, Espinas, Schneider, Caspari, Liebmann foram algumas de suas fontes indiretas sobre o darwinismo. Este último fato não permite um argumento conclusivo a favor da tese, e isso foi alegado por um dos estudos recentes sobre o tema e que pretende rever este consenso. Trata-se do livro de Dirk Johnson: Nietzsche´s anti-Darwinism, que é em parte uma resposta a dois estudos publicados também recentemente em língua inglesa: o primeiro deles é o estudo filologicamente exaustivo de Gregory Moore: Nietzsche, Biology and Metaphor; e o segundo o livro de caráter mais especulativo de John Richardson: Nietzsche´s New Darwinism. Pelo nível da polêmica e a qualidade dos argumentos de ambas as partes, podemos concluir que a questão não será resolvida tão cedo. Nosso posicionamento dependerá em boa parte do modo como nós descrevemos ou entendemos o que está em jogo numa disputa intelectual em que um dos lados é um filósofo e não pretende se posicionar senão como filósofo e o outro lado é um movimento científico que em menos de duas décadas se converteu em tema de debate obrigatório em todos os ambientes intelectualmente ativos. Há, além desta assimetria, um outro fator importante que foi destacado pelo prof. André Itaparica durante nossas discussões: a dificuldade de descrever com precisão a posição de Darwin sobre um tópico específico de sua doutrina, já que ele era muito cauteloso em suas formulações.

Uma outra cautela talvez seja necessária para entendermos a atitude de Nietzsche em relação ao darwinismo: é prudente referir os seus proferimentos ao contexto em que eles são feitos. Nas obras de juventude, por exemplo, Nietzsche afirma que considera o darwinismo verdadeiro, mas fatal (Segunda Extemporânea, 9; KSA, 1, p. 319) e com consequências nefastas (cf. KSA, 7, p. 461). Esta conclusão só pode ser compreendida à luz de seu compromisso de juventude com o idealismo prático. É em nome deste compromisso que ele ataca, por exemplo, um autor como David Strauss, que pretende conciliar o darwinismo com os valores humanistas do classicismo de Weimar e com as aspirações burguesas e liberais da segunda metade do século XIX. Esta disposição para o compromisso irrita bastante o jovem Nietzsche e ele insiste que nada duradouro em termos de cultura pode ser edificado sobre uma base tão heterogênea. A ilusão de que isso é possível advém de uma compreensão superficial das necessidades da cultura por um lado, e de uma cegueira em relação às reais implicações do darwinismo, que inviabilizam o que para o jovem Nietzsche ainda se apresenta como imprescindível: um tipo de justificativa metafísica para a existência. Independente das mudanças na compreensão de Nietzsche do darwinismo (o que devemos supor que ocorreu tendo em vista o volume de leituras que ele realizou sobre o tema ao longo dos anos subsequentes), uma coisa é certa: ele inverte a avaliação das consequências práticas do darwinismo nas obras do último período. O darwinismo não é mais visto como uma ameaça à cultura em função da radicalidade com que ele nos obriga a rever a nossa auto-imagem; ele é criticado justamente por não romper suficientemente com os princípios teóricos e práticos que definem esta auto-imagem.

Em relação aos debates pontuais envolvendo o tema Nietzsche e o darwinismo, o mais árduo e interessante diz respeito à legimitidade ou não de se admitir juízos de conformidade a fins (ou juízos teleológicos) como parte de nossas teorias acerca dos seres vivos. Este debate exige uma reconstrução que tem seu ponto de partida na Terceira Crítica de Kant e, no caso que nos interessa, é bom lembrar que este foi o tema sobre o qual Nietzsche, aos 24 anos, pensou escrever uma tese de doutoramento. Ele tomou notas de diversos autores e chegou a algumas formulações próprias sobre o tema. Além de revelar uma notável disposição para dissolver o conceito de espécie e mesmo de indivíduo em um nominalismo sem precedentes em termos de radicalidade, Nietzsche sugere que a distinção entre juízos determinantes e juízos reflexivos, ou entre juízos que estabelecem nexo causal entre eventos e subsumem o particular em uma lei geral e juízos que expressam conformidade a fins são ambos igualmente construídos com base em categorias ficcionais, o que faria desta oposição menos uma oposição epistemicamente fundada do que um resíduo dogmático do kantismo. Em face deste radicalismo de juventude, há que se perguntar por que o Nietzsche maduro volta a insistir na acusação de que o darwinismo se mantém refém de uma perspectiva teleológica na explicação dos fenômenos biológicos. De resto, permanece uma questão em aberto se a biologia pode de fato prescindir de juízos teleológicos em suas explicações. Se seguirmos os desdobramentos da biologia pós-kantiana, o que descobrimos é que há dois modelos complementares e em alguma medida concorrentes de teleologia: a chamada teleologia interna, que responde pelo funcionamento do organismo e sua relação com suas partes constituintes (elemento destacado por Kant) e a teleologia externa (que responde pelo fenômeno da adaptação do organismo ao seu meio ambiente (e que anteriormente a Darwin era o locus privilegiado do aproveitamento teológico do fenômeno da vida). Parte da revolução darwiniana consistiu em oferecer uma explicação para os fenômenos da adaptação que a resgatava da apropriação teológica, na medida em que prescindia do argumento do design inteligente. Mas ao fazer este movimento, Darwin deslocou a ênfase da explicação biológica para os chamados fatores externos; se há espaço ainda para a teleologia interna, ela estará subordinada às estratégias adaptativas (sobre este debate eu recomendo o artigo do prof. Gustavo Caponi, da UFSC, que pode ser lido na íntegra aqui, com a cortesia da Scientiae Studia). A questão que nós nos colocamos, e com a qual eu encerro esta resenha de nossa discussão na sexta é a seguinte: Nietzsche, ao insistir na crítica de que o darwinismo confere um peso indevido aos fatores externos em detrimento dos fatores endôgenos, revelando com isso sua ascendência propriamente inglesa, não teria permanecido ele mesmo aprisionado em uma dicotomia entre o externo e o interno que sua doutrina mais abrangente da vontade de poder não mais autorizava?





Da série: uma carta aos domingos

A carta que preparei para este domingo remete a um traço da personalidade filosófica de Nietzsche ao qual fiz referência em outros posts deste blog: trata-se da disposição reformista. Esta carta corrobora uma tese que não me parece controversa, ainda que ela não receba sempre o devido destaque por parte dos intérpretes de Nietzsche: esta disposição reformista, assim como o ativismo que a caracteriza são traços marcantes desta complexa personalidade filosófica em formação, mas que só se tornam visíveis à medida em que os laços com Wagner e a identificação com a causa wagneriana se intensificam, o que ocorre com bastante rapidez após o primeiro contato, em novembro de 1868. Nos póstumos do início da década de 70 podemos identificar duas tendências importantes na reflexão de Nietzsche sobre a viabilidade de uma reforma da cultura: (1) a primeira delas entende que a filosofia terá um papel subordinado nesta reforma, e que caberá à arte o papel de protagonista; superestimar o papel da filosofia e desconsiderar o papel da arte teria sido o grande erro de Platão, a quem o jovem Nietzsche já atribui a ambição de se tornar legislador em uma reforma do estado grego rumo a uma constituição pan-helênica; (2) a segunda tendência conflita diretamente com a primeira, na medida em Nietzsche sugere que em uma cultura mais robusta, como foi a cultura grega em seu período trágico, a filosofia poderia ocupar o papel que na modernidade parece caber exclusivamente à arte. Um dos fios condutores dos estudos de Nietzsche sobre os filósofos pré-platônicos, talvez o grande fio condutor destes estudos, é o esforço de pensar a viabilidade prática da filosofia (como um componente da cultura) em um contexto cultural não marcado pela hipertrofia de um de seus elementos (o político, o cognitivo, o religioso ou o mítico). Nietzsche entende que os filósofos pré-platônicos são únicos porque eles viveram em um período em que havia um relativo equilíbrio entre estes componentes. Mas ao mesmo tempo Nietzsche identifica em vários destes filósofos o desejo de impor à Grécia uma reforma na direção de um estado pan-helênico. No estudo sobre os filósofos pré-platônicos Nietzsche diz com todas as letras que numa época mais robusta caberia ao filósofo o papel de grande protagonista do projeto de reforma da cultura, e é neste contexto mais favorável que ele se dispõe a pensar o valor do filósofo e seu lugar na hierarquia das formas de vida. Eu entendo que esta é uma das razões de porque a leitura que Nietzsche faz em Tribschen de uma das versões de seus estudos sobre estes filósofos tenha provocado em Wagner uma reação tão negativa (conferir o texto introdutório do prof. Ernani Chaves, assim como a carta traduzida por ele e publicada neste blog algumas semanas atrás). Subliminarmente, Nietzsche colocava em xeque a visão que o mestre defendia sobre as condições para a reforma da cultura e a atibuição ao artista do papel de protagonista absoluto.
A reação de Wagner não foi, contudo, a razão principal que levou Nietzsche a uma conclusão pessimista em relação à eficácia política do empreendimento reformista conduzido pela filosofia. Suas notas sobre os filósofos pré-platônicos assumem um tom mais pessimista conforme avançamos rumo à segunda metade dos anos 70, em um movimento que coincide com seu progressivo afastamento do projeto wagneriano: a perda das ilusões reformistas do jovem Nietzsche atinge tanto a sua esperança quanto ao presente quanto as suas convicções acerca do passado grego e parecem dar lugar a uma crescente suspeita de que o fracasso da filosofia no passado lança uma luz dolorosa sobre as esperanças do presente, desmascarando-as como meras ilusões. Este sentimento se confirma em 1876, na grande decepção com o evento de Bayreuth. Mas o afastamento de Nietzsche de suas ambições reformistas de juventude não se deve apenas a este conjunto de reflexões acerca da viabilidade e do papel político da filosofia e da arte. Ele ocorre também, eu até diria principalmente em função de uma nova e crescente demanda pessoal por liberdade e por recolhimento. Ou, como Nietzsche diria, por uma necessidade pessoal de resfriar a máquina superaquecida pelos anos de proximidade de Wagner e de Schopenhauer, com os quais o jovem filósofo compartilhou o gosto por uma atmosfera de exaltação e de entusiasmo constantes. Em outra ocasião eu chamei a atenção para o fato de Nietzsche citar Montaigne justamente nas duas considerações extemporâneas que tratam de seus dois grandes mestres, Schopenhauer e Wagner. Estas citações são o que há de mais revelador sobre o estado de espírito de Nietzsche ao compor estes dois escritos apologéticos, e para bom entendedor elas deveriam soar como uma grande traição aos seus objetos de veneração, pois nelas o que é dito sobre Montaigne contradiz inteiramente e ponto por ponto o que se diz de forma mais prolixa no restante do texto.
Isso não significa que o traço reformista e o ativismo tenham sido deletados da personalidade filosófica de Nietzsche. O que ocorre no período intermediário é um afastamento temporário destes componentes de sua personalidade e, a se acreditar no depoimento do próprio Nietzsche, adotado para fins terapêuticos pelo seu impulso de sobrevivência e por sua vontade de independência. Estes elementos serão paulatinamente reintegrados ao todo de sua personalidade, até que eles finalmente se imponham no ainda mais ambicioso projeto de maturidade, que aparece sob a problemática rubrica de uma transvaloração de todos os valores. Nas ambições reformistas ou revolucionárias do último Nietzsche o artista não fará sombra ao filósofo, que comparece como o único à altura da tarefa de legislar novos valores. Que esta expressão ambiciosa tenha sido reservada para os póstumos parece indicar que mesmo o último Nietzsche não acreditou sem alguma reserva no poder de intervenção da filosofia. Para minimizar um pouco a sua enorme desconfiança em relação às condições de êxito da intervenção filosófica, Nietzsche parece ter adotado duas estratégias distintas: (1) passou a conceber esta intervenção em termos mais abstratos e numa perspectiva de longa duração: não se trata mais de reformar a cultura alemã ou suas instituições artísticas e educacionais, e sim os valores. No final das contas e no cômputo geral os homens da vida contemplativa terminam sempre por triunfar, sendo os homens de ação meros atores no palco tragicômico da história, atores que seguem um texto redigido pelos verdadeiros protagonistas, os filósofos e, no passado, os fundadores de religião. Os artistas são incapazes de independência e estão a serviço de causas postas por outros; (2) do ponto de vista de uma intervenção mais imediata, Nietzsche parece ter concentrado seus últimos esforços numa tentativa de demolir o cristianismo mediante o sequestro de seu fundador legítimo, desvinculando-o de todos os grandes dogmas pelos quais se pautou o cristianismo historicamente existente, e mediante um ataque impiedoso à figura de seu fundador institucional, o apóstolo Paulo, contra o qual Nietzsche mobiliza argumentos que remetem em parte a valores compartilhados pelos cristãos.
Este é o esboço geral do que eu suponho que sejam os desdobramentos futuros do que está em germe nesta carta de Nietzsche de dezembro de 1870 a Erwin Rohde. Há muitos outros elementos interessantes nesta correspondência, mas que são subsidiários disso que eu suponho que seja o seu ponto principal. Um destes elementos é um topos comum das discussões nietzscheanas: em que medida a filosofia, tal como concebida por Nietzsche, é compatível com a forma institucional do ensino universitário. Esta discussão não se restringe a Nietzsche; ela é uma velha obsessão de filósofos. A filosofia quase sempre esteve em crise com as instituições, e é disso que estamos falando ao longo deste post: parte importante do ímpeto reformista do filósofo se dirige às instituições. Mas é igualmente necessário lembrar que a filosofia não poderia sobreviver fora de todo e qualquer quadro institucional: fundar um monastério para espíritos livres (o projeto que Nietzsche já parece ter em mente como um substituto para a instituição universitária e que ganha uma pequena concretização na estadia de Sorrento em 1877) não é prescindir das instituições, mas substituir uma instituição enrijecida por outra com regras (uma vida sem regras e sem hábitos, sem alguma rotina, seria humanamente insuportável) mais adequadas às necessidades corporais e espirituais de seus membros, que permita um segundo tipo de reforma, este mais importante do que o primeiro, porque é o verdadeiro fim do primeiro: a reforma de si.

E antes da tradução propriamente dita, segue um link para aqueles que leem e entendem alemão. Um ótimo programa da Deutschlandfunk (uma estação de rádio alemã com programação de altíssimo nível) sobre o programa reformista de Nietzsche, com uma fina reflexão sobre a melancólica percepção de que ele estava condenado ao fracasso. O autor é o teórico da literatura e historiador da filosofia Peter Bürger. Segundo suas conclusões, Nietzsche pertence a uma linhagem de pensadores que teve em Adorno seu último representante.

Tenham todos um bom domingo.
Com vocês o jovem Nietzsche, mais uma vez.

Carta enviada por Nietzsche de Basel ao amigo Erwin Rohde em Hamburgo, datada de 15 de dezembro de 1870.

Meu querido amigo,

Sequer um minuto se passou desde a leitura de tua carta e já te escrevo. Queria dizer-te apenas isto: que sinto exatamente o mesmo que ti e que considero uma ignomínia se não nos desembaraçarmos algum dia deste torpor nostálgico por meio de uma ação enérgica. Agora ouça o que venho remoendo em meu espírito. Nós nos arrastaremos ainda durante alguns anos por esta existência universitária, e a tomaremos por um sofrimento instrutivo, que se tem que suportar com seriedade e com espanto. Entre outras coisas, este deve ser um tempo em que se aprende como ensinar, e aperfeiçoar-me nisso vale para mim como minha tarefa. Acontece apenas que eu me propus um objetivo algo mais elevado.

Pois com o tempo começo também a perceber qual é o ponto da doutrina schopenhaueriana acerca da sabedoria universitária. Aqui não é possível um ser inteira e radicalmente voltado para a verdade. Sobretudo, algo verdadeiramente revolucionário não poderá tomar a universidade como seu ponto de partida.

Nós só podemos, portanto, nos tornar verdadeiros mestres na medida em que formos capazes de alçar a nós mesmos, com todos os meios possíveis, para fora da atmosfera do tempo presente, e na medida em que formos não apenas mais sábios, mas sobretudo melhores. Também aqui eu sinto, sobretudo, a necessidade de ser verdadeiro. E também por isso eu não poderei suportar por muito mais tempo o ambiente das academias.

Por conseguinte, devemos nos livrar algum dia deste jugo; isto para mim é absolutamente certo. E então formaremos uma nova academia grega. Romundt com certeza estará conosco. Por ocasião de tua visita a Tribschen certamente tomastes conhecimento do plano de Wagner para Bayreuth. Eu tenho refletido comigo mesmo se não deveria ocorrer simultaneamente de nossa parte uma ruptura com a filologia, tal como ela tem sido praticada até o momento, e com sua perspectiva formadora. Estou preparando uma grande adhortatio [exortação] a todos aqueles que ainda não foram inteiramente sufocados ou engolidos pelo tempo presente. Mas quão lamentável é o fato de que eu tenha que expor-te estas coisas por escrito, e que cada um destes pensamentos já não tenha sido discutido contigo há muito tempo! E como não conheces o presente dispositivo na sua totalidade, meu plano provavelmente te parecerá um capricho excêntrico. Isto ele não é, ele é uma necessidade.

Um livro de Wagner sobre Beethoven que acaba de ser publicado poderá te dar uma pista de muito daquilo que eu agora espero do futuro. Leia-o, ele é uma revelação do espírito em que nós – nós! – viveremos futuramente.

E mesmo que tenhamos poucos companheiros que compartilhem de nossas ideias, eu ainda assim acredito que conseguiremos nos subtrair a esta corrente – com alguma perda, é claro – e alcançaremos uma pequena ilha onde não precisaremos mais tapar os ouvidos com cera. Seremos então mestres uns dos outros, e nossos livros não serão mais que anzóis destinados a conquistar este ou aquele para a nossa comunidade artístico-monástica. Viveremos e trabalharemos uns para os outros e nos deliciaremos uns com os outros – esta talvez seja a única forma sob a qual devemos trabalhar para o todo.

Para te provar a seriedade do meu intento já comecei a limitar as minhas necessidades, de modo a reservar uma pequena parte de meus bens. Também deveremos tentar a nossa “sorte” em loterias; e se escrevermos livros, eu exigirei para o período vindouro os mais altos honorários. Enfim, todos os meios não ilícitos serão empregados para que objetivamente estejamos em condições de fundar o nosso monastério. – Temos, portanto, a nossa tarefa para os próximos anos.

Que este plano possa, sobretudo, parecer-te digno de ser cogitado! A carta deveras comovente que acabo de receber de ti me dá a comprovação de que este era o momento de te expor o plano.

Não estaremos nós em condições de trazer ao mundo uma nova forma de academia,

“e acaso não posso, pela força do mais ardente desejar,

trazer de volta à vida das formas a mais singular?

como diz Fausto a propósito de Helena?

Ninguém sabe coisa alguma deste intento, e depende de ti se nós agora faremos ou não a Romundt um comunicado preparatório sobre o mesmo.

Nossa escola para filósofos não é, certamente, alguma reminiscência histórica ou um capricho excêntrico – pois não é uma necessidade que nos move nesta direção? Parece que o plano que fizemos quando estudantes, de viajarmos juntos, retorna sob uma nova forma, simbolicamente mais abrangente. Eu não pretendo ser aquele que mais uma vez te deixa na mão, como ocorreu outrora; disso eu ainda guardo remorsos.

Com as melhores esperanças

Teu fiel frater Fridericus.

De 23 de dezembro até 01 de janeiro estarei em Tribschen, Lucerna. – Ignoro inteiramente os planos de Romundt.