Me parece que uma das grandes omissões da pesquisa Nietzsche (principalmente da pesquisa feita no Brasil, mas isso vale também em grande medida para o que se faz no resto do mundo), tem sido em torno da correspondência do filósofo. Nietzsche dominou como poucos o gênero epistolar, se servindo deste meio com bastante frequência para compensar o considerável isolamento a que o seu estilo de vida errante o obrigava. Mas antes mesmo de se converter em um andarilho, Nietzsche se exercitou muito neste gênero de comunicação, o que não é nada surpreendente dadas as condições da época. Em todo caso, creio que temos à nossa disposição um riquíssimo material, que tem sido explorado quase exclusivamente pelos biógrafos do filósofo, o que de modo algum se justifica, exceto se queremos defender uma metodologia fanaticamente imanentista. Como hoje em dia não se encontra com muita frequência alguém disposto a defender (pelo menos abertamente) posição tão extremada, não me ocorre nenhum argumento que possa justificar esta sistemática omissão por parte dos pesquisadores.
Dentro da proposta de dinamizar este blog, tornando-o um espaço de discussão ágil e informal, proponho inaugurar uma seção dedicada à tradução (ou à tentativa de) de pequenos trechos da correspondência de Nietzsche que tenham relevância para a compreensão de seu percurso filosófico e de sua personalidade. Quem sabe esta iniciativa não estimule os jovens e talentosos tradutores ligados à nossa pesquisa Nietzsche a assumirem para si a tarefa de tradução da correspondência do filósofo? Mas o objetivo aqui é mais modesto e realista: fazer com que os leitores e colaboradores do blog se sintam estimulados a reagir ao material exposto à apreciação e à crítica, com comentários e sugestões de correção, mas também com traduções de material que julguem de interesse para a nossa discussão. Segue o primeiro experimento: uma carta do jovem Nietzsche, do período de Bonn, endereçada à irmã, e que tem alguma conexão com o que eu e o William vinhamos discutindo na seção de comentários, como reação ao meu post sobre Nietzsche e o kantismo. Esta é a primeira manifestação explícita de Nietzsche em relação aos compromissos fundamentais da vida intelectual. Nesta primeira manifestação, Nietzsche afirma claramente que estes compromissos excluem quaisquer considerações terapêuticas ou eudaimonísticas, o que aponta na direção do que eu chamei de evidencialismo extremado como uma posição recorrente nas considerações do filósofo acerca dos critérios éticos que devem orientar nossa atitude diante de nossas próprias crenças e dos processos que atuam na sua fixação. É evidente que aqui Nietzsche não está afirmando que estes critérios rigorosos devam se aplicar a todos, mas somente àqueles que se sentem comprometidos com a pesquisa da verdade, (e poderíamos talvez acrescentar: somente na medida em que estão envolvidos com a pesquisa da verdade). Mas não se pode negar que ele também dá a entender que a pesquisa da verdade não é um ofício, do qual nos desincumbimos ao deixarmos nossos laboratórios e gabinetes de trabalho, mas algo mais fundamental, que define uma forma de vida. Vejam como Nietzsche pode soar assustadoramente 'convencional' em relação à pesquisa da verdade e radicalmente comprometido com o ethos da moderna consciência científica numa idade em que ele mal havia iniciado a sua formação de filólogo.
Carta a Elisabeth Nietzsche em Colditz.
Bonn, no domingo seguinte à festa de Pentecostes (11 de junho de 1865)
Querida Lisbeth,
Depois de uma carta tão graciosa e entretecida de poemas juvenis como a última que eu recebi de ti, seria injusto e ingrato deixá-la esperando ainda mais tempo por uma resposta; principalmente porque desta vez eu disponho de um rico material e é com grande satisfação que “rumino” no espírito a alegria desfrutada.
[...] No que diz respeito ao seu princípio de que o verdadeiro está sempre do lado do mais difícil, eu o concedo a você em parte. Contudo, é difícil conceber que 2 x 2 não seja 4; ele se torna por isso mais verdadeiro?
Por outro lado, é realmente tão difícil simplesmente aceitar tudo aquilo que nos foi ensinado e que aos poucos adquiriu raízes profundas, tudo aquilo que vale como verdade no círculo dos familiares e de tantos homens de bem e que, além disso, consola e enaltece efetivamente os homens? Tudo isso é mais difícil do que trilhar novos caminhos, em luta contra o hábito, na insegurança de seguir com independência, sob as constantes oscilações do ânimo e mesmo da consciência, frequentemente sem qualquer consolo, mas sempre com o perene objetivo do verdadeiro, do belo e do bom?
Trata-se então de obter aquela visão de Deus, mundo e reconciliação que nos faça sentir mais confortáveis? Para o autêntico pesquisador não seria, antes pelo contrário, inteiramente indiferente o resultado de sua investigação? Ao investigarmos estamos, por acaso, à procura de tranqüilidade, paz, felicidade? Não, apenas a verdade, ainda que ela seja repulsiva e feia no mais alto grau.
Ainda uma última questão: se nós tivéssemos acreditado desde a infância que toda salvação da alma provém de outra pessoa que não Jesus, de Maomé, por exemplo; não é certo que teríamos vivenciado as mesmas bênçãos? É certo que apenas a fé abençoa, não aquilo que de objetivo se encontra por trás da fé. Eu te digo isso, querida Lisbeth, apenas para confrontar os meios de prova mais usuais dos crentes, que apelam para suas experiências interiores e extraem delas o caráter indisputável de sua crença. Toda verdadeira crença é também indisputável, [pois] ela supre aquilo que a pessoa que tem a crença espera encontrar nela; mas a crença não oferece o menor suporte para a fundamentação de uma verdade objetiva.
É aqui então que os caminhos dos homens se separam; se você quer aspirar à tranqüilidade da alma e à felicidade, então creia; se você quer ser um discípulo da verdade, então investigue.
Entre estes extremos há uma quantidade de pontos de vista intermediários. Trata-se, contudo, do fim principal. [...] (Carta de número 469, tradução parcial a partir de KSB, 2: pp. 60-61).
Carta a Elisabeth Nietzsche em Colditz.
Bonn, no domingo seguinte à festa de Pentecostes (11 de junho de 1865)
Querida Lisbeth,
Depois de uma carta tão graciosa e entretecida de poemas juvenis como a última que eu recebi de ti, seria injusto e ingrato deixá-la esperando ainda mais tempo por uma resposta; principalmente porque desta vez eu disponho de um rico material e é com grande satisfação que “rumino” no espírito a alegria desfrutada.
[...] No que diz respeito ao seu princípio de que o verdadeiro está sempre do lado do mais difícil, eu o concedo a você em parte. Contudo, é difícil conceber que 2 x 2 não seja 4; ele se torna por isso mais verdadeiro?
Por outro lado, é realmente tão difícil simplesmente aceitar tudo aquilo que nos foi ensinado e que aos poucos adquiriu raízes profundas, tudo aquilo que vale como verdade no círculo dos familiares e de tantos homens de bem e que, além disso, consola e enaltece efetivamente os homens? Tudo isso é mais difícil do que trilhar novos caminhos, em luta contra o hábito, na insegurança de seguir com independência, sob as constantes oscilações do ânimo e mesmo da consciência, frequentemente sem qualquer consolo, mas sempre com o perene objetivo do verdadeiro, do belo e do bom?
Trata-se então de obter aquela visão de Deus, mundo e reconciliação que nos faça sentir mais confortáveis? Para o autêntico pesquisador não seria, antes pelo contrário, inteiramente indiferente o resultado de sua investigação? Ao investigarmos estamos, por acaso, à procura de tranqüilidade, paz, felicidade? Não, apenas a verdade, ainda que ela seja repulsiva e feia no mais alto grau.
Ainda uma última questão: se nós tivéssemos acreditado desde a infância que toda salvação da alma provém de outra pessoa que não Jesus, de Maomé, por exemplo; não é certo que teríamos vivenciado as mesmas bênçãos? É certo que apenas a fé abençoa, não aquilo que de objetivo se encontra por trás da fé. Eu te digo isso, querida Lisbeth, apenas para confrontar os meios de prova mais usuais dos crentes, que apelam para suas experiências interiores e extraem delas o caráter indisputável de sua crença. Toda verdadeira crença é também indisputável, [pois] ela supre aquilo que a pessoa que tem a crença espera encontrar nela; mas a crença não oferece o menor suporte para a fundamentação de uma verdade objetiva.
É aqui então que os caminhos dos homens se separam; se você quer aspirar à tranqüilidade da alma e à felicidade, então creia; se você quer ser um discípulo da verdade, então investigue.
Entre estes extremos há uma quantidade de pontos de vista intermediários. Trata-se, contudo, do fim principal. [...] (Carta de número 469, tradução parcial a partir de KSB, 2: pp. 60-61).
Olá,
ResponderExcluirRogério tem toda razão em relação à importância da correspondência de Nietzsche para a compreensão de sua obra e de seu percurso. Precisamos urgentemente de uma edição brasileira das cartas (que na impossibilidade de ser completa, fosse pelo menos uma boa seleção), trabalho hercúleo, sem dúvida. Ainda neste final de semana enviarei ao Rogério a tradução de uma carta a Wagner, de 18 de abril de 1873, e num pequeno texto introdutório, tentarei justificar porque esta carta é fundamental.
Abraços a todos e todas das Alterosas e alhures (como é o caso do William, nosso correspondente internacional!)
Ernani