domingo, 6 de março de 2011

Da série: uma carta aos domingos

Hoje deixo à curiosidade dos nossos leitores especular sobre o significado desta carta de Nietzsche ao amigo Carl von Gersdorff, enviada de Naumburg em 07 de abril de 1866. A tradução é uma primeira versão, provisória e caseira, e não traz a carta na sua íntegra, mas apenas os trechos que considero mais significativos.
Acredito que esta carta nos revela um traço marcante da personalidade filosófica de Nietzsche (um traço que ainda não havia aparecido nas cartas anteriores que publicamos no blog) , e que este traço se insinua tanto na contramão quanto à revelia da atmosfera e do vocabulário próprios à filosofia de Schopenhauer, de quem Nietzsche se confessa neste momento um ardoroso e, em alguma medida, atormentado discípulo. Com vocês uma vez mais o jovem Nietzsche. Um bom final de carnaval a todos.
Rogério.

Carta enviada de Naumburg em 7 de Abril de 1866, ao amigo Carl von Gersdorff, em Görlizt. (KSB, 2: p. 119-123)

Querido Amigo:

Ocasionalmente somos tomados por momentos de uma serena contemplação, nos quais planamos acima de nossa própria vida, com um misto de alegria e tristeza, como aqueles belos dias de verão, que se estendem ampla e aprazivelmente sobre as colinas e cuja excelente descrição encontra-se em Emerson; e então a natureza atinge a sua plenitude, como ele diz; e nós dizemos: e então nos tornamos livres do encanto da vontade sempre vigilante, e então somos um olho puro, contemplativo, desinteressado. É nesta disposição de espírito, a mais desejável de todas, que eu pego da pena para responder à tua carta, tão rica de pensamentos e tão amigável. [...]

Três são as minhas distrações, ainda que ocasionais: meu Schopenhauer, a música de Schumann e, finalmente, passeios solitários. Ontem se anunciava uma tremenda tempestade no céu, eu subi apressadamente até a montanha próxima, chamada “Leusch” (talvez você saiba me dizer o significado desta palavra), onde encontrei uma choupana e um homem que acompanhado do filho abatia dois cabritos. A tempestade desabou violentamente, em meio a ventania e granizo; eu senti uma incomparável exaltação e percebi com clareza que nós só compreendemos bem a natureza quando nos refugiamos junto a ela, longe de nossos cuidados e apuros. O que era para mim o homem e seu atormentado querer! O que era para mim o eterno “Tu deves”, “Tu não deves”! Quão diferentes o raio, a ventania, o granizo, forças livres, sem ética! Quão livres e poderosas são tais forças, vontade pura, sem as turvações do intelecto! [...]

Hoje ouvi um engenhoso sermão de Wenkel sobre o Cristianismo, “a fé que sobrepujou o mundo”, de uma arrogância insuportável em relação a todos os povos que não são cristãos, mas ainda assim muito matreiro. A todo o momento ele substituía a palavra cristianismo por uma outra, resultando sempre em um sentido correto, mesmo para a nossa concepção. Quando se substitui a sentença “o cristianismo sobrepujou o mundo” pela sentença “o sentimento do pecado, em suma, uma necessidade metafísica sobrepujou o mundo”, então isso não tem para nós nada de escandaloso; mas é preciso ser consequente e dizer: “os verdadeiros hindus são cristãos”, mas também: “os verdadeiros cristãos são hindus”. Mas no fundo, a permuta de tais palavras e conceitos, fixados sabe-se lá quando, não é de todo honesta, pois os fracos de espírito se tornam completamente desorientados. Se o cristianismo significa “fé em um evento histórico ou em uma pessoa histórica”, então eu nada tenho a ver com este cristianismo. Se o cristianismo significa, contudo, tão somente necessidade de redenção, então eu posso estimá-lo sumamente, e sequer levarei a mal que ele procure disciplinar os filósofos; pois estes são muito poucos em comparação com a monstruosa massa dos necessitados de redenção, que de mais a mais são feitos da mesma matéria. Sim, mesmo que todos que se ocupam de filosofia fossem discípulos de Schopenhauer! Mas é com demasiada frequência que por trás da máscara do filósofo se oculta a alta majestade da “vontade”, que procura trabalhar para a sua própria glorificação. Se os filósofos governassem, então τό πλήτος [o povo] estaria perdido; se esta massa governa, como acontece agora, então competirá sempre ainda ao filósofo, raro in gurgite vasto [poucos no vasto oceano], τίχα άλλων [separado dos demais], como Ésquilo, φρονέειν [penso por conta própria].

Ao mesmo tempo, contudo, nos é extremamente penoso conter nossas ainda jovens e vigorosas ideias schopenhauerianas, exprimindo-as apenas pela metade e, para completar, ter sempre sobre o coração o fardo desta malfadada diferença entre teoria e prática. Para isso eu não sei de nenhum consolo; pelo contrário, sou eu mesmo necessitado de consolo. A mim me parece que deveríamos julgar o cerne da questão de forma mais branda. Pois ele se imiscui também nesta colisão.

Passe bem, querido amigo. Saudações aos teus. Lembranças da minha família. E ficamos acertados! Tão logo nos reencontremos haveremos de rir – e com razão.

Do amigo,

Friedrich Nietzsche.

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