domingo, 27 de fevereiro de 2011

Da série: Uma carta aos domingos

Aproveito o último domingo de fevereiro para rebatizar a série "Pequenas traduções..." de "Uma carta aos domingos". A proposta segue sendo a mesma apresentada no post que inaugurou a série "Pequenas traduções...": traduzir em ritmo de conta-gotas trechos significativos da correspondência de Nietzsche, trechos que iluminem seu percurso intelectual (relativamente tumultuado) e permitam uma compreensão de sua intrincada personalidade filosófica. A ideia é que nossas discussões envolvam tanto as soluções de tradução propostas quanto as especulações sobre o significado e a revelância do conteúdo da correspondência para a compreensão daqueles aspectos que eu mencionei acima. "Uma carta aos domingos" como um novo título para a série "pequenas traduções..." tem o sentido de um convite/desafio endereçado aos colaboradores/e leitores do blog para mantermos uma continuidade de trabalho e discussão ao longo do ano em torno da correspondência de Nietzsche. De hoje até o final do ano teremos 43 domingos, o que representa um volume nada desprezível de cartas. Convido todos a exporem suas traduções "caseiras" neste espaço de compartilhamento da pesquisa, justamente para que elas deixem se ser caseiras e passem a habitar um outro espaço, o da discussão pública. Temos a alegria de reinaugurar esta série com uma contribuição do prof. Ernani Chaves, de quem roubei a expressão "tradução caseira": uma carta de Nietzsche a Wagner, datada de 18 de abril de 1873, precedida das considerações de Ernani sobre a relevância da mesma. A carta apresenta Nietzsche na inusitada posição de total submissão a Wagner, inusitada para aqueles que estão familiarizados com a defesa incondicional da independência e liberdade espiritual que compõe a atmosfera da filosofia nietzscheana a partir justamente de sua ruptura com a figura do mestre. Segue o texto do prof. Ernani, assim como sua proposta de tradução:

A carta de Nietzsche a Wagner, cuja tradução vem em seguida, é uma das mais importantes deste período da vida de Nietzsche. Isso porque ela foi escrita após uma das visitas que Nietzsche fez a Wagner em Bayreuth. Desta feita, próximo à Páscoa de 1873, em companhia de Erwin Rohde. Naquela ocasião, Nietzsche levou consigo um manuscrito, que leu para Wagner e Cosima: tratava-se de um novo livro, sobre os filósofos pré-platônicos. Wagner não gostou nada do que ouviu, pois as idéias de Nietzsche expressas neste novo livro contrariavam, frontalmente, aquelas que tinham sido expostas no Nascimento da Tragédia, dois anos antes e que tanto haviam contribuído para o “idílio de Tribschen”. Nenhuma valorização do mito, pelo contrário, Nietzsche interpretava os pré-platônicos a partir da ciência que lhe era contemporânea, atribuindo a esta um valor que o Nascimento da Tragédia havia recusado. O manuscrito já não continha mais nenhuma “metafísica de artista” e dessa maneira, não trazia nenhuma contribuição para a renovação da cultura que o programa wagneriano pregava. Em outras palavras, tratava-se de um Nietzsche, já neste momento e sem talvez que ele tivesse plena consciência disso, anti-Bayreuth.

Ora, mas o que lemos na carta de Nietzsche é um impressionante pedido de desculpas, uma ainda impressionante veneração a Wagner, um Nietzsche que se apresenta como um “discípulo” (Schüler) de pouca capacidade. O resultado: ele abandona a idéia de publicar o manuscrito e seguindo uma sugestão do próprio Wagner imediatamente iniciou a série das “Extemporâneas”, atacando justamente David Strauss, um dos opositores de Wagner. Ele pretendia ser livre e autônomo, mas tudo tinha sido em vão, escreve ele na carta. O livro sobre os pré-platônicos jamais foi publicado por Nietzsche. Deste material, além dos inúmeros fragmentos póstumos, conhecemos o manuscrito das “Preleções” sobre o assunto, ministradas na Universidade da Basiléia e o texto, mais conhecido, “A filosofia na época trágica dos gregos”, que não é uma pura e simples “cópia” das “Preleções”.

Para os que quiserem compreender mais ainda a importância estratégica desta carta, sugiro a leitura de Paolo D’Iorio, “L’image des philosophes preplatonicienes chez le jeune Nietzsche”. In: Borsche, T., Gerratana, F. und Venturelli, A. (Hrs.), ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 383-417. Paolo D’Iorio também publicou, na França, uma edição crítica das preleções de Nietzsche sobre os “filósofos pré-platônicos”. A tradução abaixo, ainda no estado de “caseira”, também está em discussão.

Ernani Chaves

Carta a Richard Wagner, em Bayreuth. (KSB, 4, pp. 144-145).

Basiléia, 18 de abril de 1873.

Honrabilíssimo Mestre,

Vivo pensando constantemente nos dias passados em Bayreuth e tudo que aprendi e vivenciei de novo lá em tão curto tempo se espraia diante de mim com plenitude cada vez maior. Se o senhor não pareceu satisfeito com minha presença, o compreendo muito bem, sem poder mudar alguma coisa, pois aprendo e percebo muito devagar e vivencio a cada momento ao seu lado algo sobre o qual jamais havia pensado e o meu desejo é fixá-lo em minha memória. Sei perfeitamente, caríssimo Mestre, que o senhor não pode descansar com uma visita assim, que por vezes deve ser insuportável. Desejei a mim mesmo, no mínimo, com muita freqüência, a aparência de uma grande liberdade e autonomia, mas foi em vão. Enfim, peço-lhe, tome-me apenas como discípulo, possivelmente com a pena na mão e o caderno diante de si, além disso, como discípulo com uma capacidade muito lenta e pouco versátil. É verdade que fico diariamente muito melancólico, quando sinto, com razão, o quanto gostaria de lhe ajudar em alguma coisa, de ser-lhe útil, e o quanto sou totalmente incapaz disso, de tal modo que possa contribuir, pelo menos uma vez, com algo para sua distração e entretenimento.

Ou, talvez, mais uma vez, se falasse que agora mesmo tenho entre as mãos um escrito contra o conhecido escritor David Strauss. Há pouco percorri o seu “antigas e novas crenças” e me admirei tanto da obtusidade e vulgaridade do autor, assim como do pensador. Uma bela coletânea de ensaios estilísticos do tipo mais abominável deve mostrar publicamente, o quanto isso diz respeito a esse pretenso “clássico”.

Em minha ausência, o escrito de Overbeck, meu companheiro de casa, “sobre a cristandade de nossa teologia”, ficou bem adiantado, ele tem um caráter bem ofensivo contra todos os partidos e é, por outro lado, tão irrefutável e tão sério, que ele também, após a publicação do livro deverá ser proscrito, como alguém que, segundo a expressão do Prof. Brockhausen, “arruinou sua carreira”. Pouco a pouco, a Basiléia torna-se, com razão, escandalosa.



7 comentários:

  1. Olá Rogério e Ernani!

    Esta série é um ótimo desafio. Se ao final desses 43 domingos tivermos 43 traduções já será realmente uma quantidade considerável de cartas e trechos de cartas traduzidos pro português. Sem contar que a qualidade das traduções postadas até agora é muito boa! Em breve eu devo postar uma humilde contribuição, algumas passagens da correspondência entre Nietzsche e Peter Gast de fins de julho de 1885, que lançam uma luz a mais na compreensão dos aspectos teóricos da tese do eterno retorno.

    Um abraço!

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  2. Obrigado pelo comentário William. Estaremos aguardando ansiosos por sua contribuição, mas sugestões para aprimorar as nossas versões caseiras também serão bem vindas.
    Um abraço!

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  3. Bom, Rogério, como eu disse, acho que as traduções estão muito boas. Se eu apresento algumas soluções alternativas aqui então, com pouquíssimas excessões, é só pra oferecer algumas opções a mais com relação a algumas passagens que eu teria traduzido, por uma questão de estilo, uma questão subjetiva, de forma um pouco diferente. Mas não são senão detalhes, com pouquíssimas excessões, me parece. Voilà:

    Da carta à von Gersdorff de fins de agosto de 1866:

    - "Por fim, devo mencionar ainda Schopenhauer, a quem continuo aderindo com a mais plena simpatia."
    - "Seu resultado é resumido nas três proposições seguintes".
    - "Portanto, a verdadeira essência das coisas, a coisa em si, não somente nos é desconhecida, como seu conceito mesmo não é nada mais nada menos (...) do qual não sabemos se possui qualquer significado fora de nossa experiência. Deixemos pois os filósofos livres, pensa Lange, contanto que eles nos edifiquem a partir de então" (eu mesmo modifiquei um pouco essa parte na tradução provisória que eu havia feito há algum tempo, acho importante tentar manter o "hinfüro", apesar de ser difícil achar um correspondente satisfatório no português).

    Da carta à Paul Deussen de abril/maio de 1868:

    - "Quem acompanha o curso das pesquisas pertinentes ao tema, principalmente das pesquisas fisiológicas a partir de Kant" (creio que "a partir" designa melhor o sentido de "seit" neste caso do que "desde", já que "desde" se refere mais aos aspecto temporal, enquanto "seit", neste caso, parece se referir mais ao ponto de partida teórico do que à anterioridade temporal de Kant, oder?)

    - "Assim, a metafísica pertence, para alguns homens, ao domínio das necessidades do espírito, é essencialmente edificação: por outro lado, ela é arte, a saber, a arte da poesia conceitual." (Gosto muito da solução "ficção conceitual" e acredito mesmo que ela é, em certo sentido, mais adequada. Mas continuo particularmente preferindo a expressão "poesia conceitual", talvez por hábito ou pré-conceito, talvez por achar que ela traduz melhor a natureza da linguagem à qual Nietzsche recorre na sua Begriffsdichtung).

    Da carta à Paul Deussen de outubro de 1867:

    - ""As águas do infortúnio", para dizê-lo figurativamente, já não me desencorajam a seguir o meu caminho, pois elas já não me são mais imperscrutáveis." (me parece que a expressão "über den Kopf gehen" está associada a uma dificuldade ou mesmo impossibilidade de compreensão ou assimilação de algo, assim como a expressão "über den Kopf" se refere em geral a uma limitação intelectual ou física frente a algo).

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  4. Da carta à Wagner:

    - "Tenho passado meus dias a me recordar continuamente dos dias passados em Bayreuth, e tudo de novo que aprendi e vivenciei em tão pouco tempo se estende diante de mim..." (sugestão para tentar manter o aspecto de monotonia presente no verbo "dahinleben")
    - "Sei perfeitamente, caríssimo mestre, que uma tal visita não pode lhe trazer descanso, que, por vezes, ela deve ser mesmo insuportável. Com frequência, desejava-me a mim mesmo no mínimo a aparência de uma maior liberdade e autonomia".
    - "quando sinto justamente o quanto gostaria de lhe ajudar de alguma forma, de ser-lhe útil, e o quanto sou totalmente incapaz disso, de modo que não posso nem mesmo contribuir com algo para sua distração e contentamento." (acho que "nicht einmal" aqui significa "nem", "nem mesmo").

    "Ou talvez sim, quando eu tiver terminado o que tenho agora em mãos, um escrito contra o conhecido (…) e me admirei tanto da obtusidade e vulgaridade do autor quanto da do pensador. Uma bela coletânea de ensaios, do tipo mais abominável, deve ainda mostrar publicamente o que esse pretenso "clássico" representa." (tenho a impressão que "einmal" aqui não significa exatamente "uma vez", mas pertence à expressão "doch einmal". No mais, "wenn ich das ausgeführt habe, was ich jetzt unter den Händen habe", acho que quer dizer: "quando eu tiver terminado o que tenho agora em mãos (ou entre as mãos)"; a expressão "wie steht es mit" é muito geral e um pouco difícil de traduzir, né? mas tenho a impressão que, nesse caso, quer dizer algo como "o que ele representa", "do que se trata", etc.)

    - "ele tem um caráter de tal modo ofensivo contra todos os partidos e é, por outro lado..."

    - "A Basiléia está se tornando pouco a pouco realmente escandalosa (ou indecente?)." (acho que "recht" aqui significa algo como "realmente", "efetivamente").

    Bom, aí vão algumas sugestões, também em "estado caseiro".

    Abraço!

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  5. Obrigado pelos comentários, William, e também pelas sugestões. Preciso refletir um pouco sobre elas e decidir o que incorporar.
    Um abraço,
    Rogério.

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  6. Oi Rogério, oi William,

    desculpem, mas só hoje voltei a olhar o site e ler as sugestões do William. Uma "tradução caseira" é como "comida caseira", chega um, chega outro e a gente vai melhorando o sal. mas, como o William disse, é muito provável que a o final desta empreitada, tenhamos uma pequena e preciosa coletânea de cartas de Nietzsche para o público brasileiro.

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  7. Se não temos em português, em espanhol já temos cinco volumes de Correspondências de Nietzsche publicadas.

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