Continuando a resenha:
Paralelamente à mesa da manhã do dia 29, apresentada no final da última postagem, houve a mesa “Arte e crítica da decadência” e o atelier intitulado “Decadência e fisiologia da arte”, cujas apresentações (os títulos e os resumos) podem ser vistas no programa e no caderno de resumos nos links postados no comentário à última postagem.
A seção da parte da tarde na qual estive presente foi intitulada: “Moral e espiritualização”, e constou de um atelier (“Espiritualização – Moral como contra-natureza”), do qual fizeram parte Isabelle Wienand e Clademir Luíz Araldi, e da apresentação de André Muniz Garcia, intitulada: “Moral é apenas linguagem de signos, apenas sintomatologia”: a interpretação semiótica de Nietzsche de fatos morais em “O melhorador da humanidade” Nr. 1”. As cominucações do atelier tiveram por tema respectivamente: “O tema da paz de espírito em “Moral como contra-natureza” e “A vontade de poder como “moralização” dos impulsos”. Isabelle Wienand iniciou com sua apresentação do tema da “paz de espírito” (Frieden der Seele, literalmente “paz da alma”), falando sobre a ambivalência da noção a partir do aforismo 3 de “Moral como contra-natureza” e apresentando toda uma gama de fragmentos póstumos de 1885-1888 sobre o tema (entre eles: 49[59] Sept. 1885; 7[6] Ende 1886-Frühjahr 1887; 10[157] Herbst 1887; 11[316] Nov. 1887-März 1888). Clademir Araldi, por sua vez, tratou do problema da ambivalência do termo “espiritualização” (Vergeistigung) em sua relação com a noção de “moralização” a partir do conceito de vontade de poder. A primeira questão através da qual os dois palestrantes foram confrontados veio de Isabelle Wienand, que questionou a aproximação feita por Clademir entre espiritualização e moralização, já que, segundo ela, esses conceitos se referem a pensamentos absolutamente distintos e mesmo contrários. De fato, se por um lado a noção de moralização implica uma referência essencial e evidente ao âmbito da moral (compreendida por Nietzsche como o âmbito da aniquilação dos afetos e das paixões), o termo espiritualização, de importância central nos aforismos 1 e 3 do capítulo em questão, serve para caracterizar exatamente um contra-movimento frente à moral aniquiladora das paixões. É exatamente na medida em que uma natureza decadente não é capaz de estabelecer um compromisso com seus afetos, de resistir às paixões no sentido de não reagir imediatamente e de forma deflagrante a um estímulo (e aqui retornamos ao tema apresentado por Brusotti em sua conferência), que ela tem necessidade da aniquilação das paixões: “il faut tuer les passions”. A espiritualização seria nesse caso a alternativa sadia para o estabelecimento de um “compromisso” com as paixões. A resposta de Clademir consistiu em chamar atenção para o fato de que o termo “moralização”, assim como a noção de “moral”, não devem ser entendidos sempre de um ponto de vista negativo e pejorativo. Existiria em Nietzsche, além da acepção negativa, uma certa compreensão da moral como forma de manifestação positiva da vontade de poder. E então ele apresenta sua tese de base: tendo isso vista, não seria possível compreender o capítulo em questão de CI, e mesmo a obra como um todo, sem ter em mente o conceito de vontade de poder. O fio condutor para a leitura dessa obra deve ser retirado da noção de vontade de poder. É preciso levar em conta que o período de composição de CI é marcado por uma intensa preocupação de Nietzsche com esse conceito, e que este aparece com uma frequência singular nos fragmentos póstumos, apesar de não ser mencionado diretamente no contexto dos aforismos em questão da obra publicada. A réplica de Isabelle Wienand é curta e precisa: mesmo que a noção de moral não seja sempre tomada em uma acepção puramente negativa, este é exatamente o caso no contexto dos aforismos reunidos sob o título “Moral como contra-natureza”. Ou seja, dentro desse contexto, a aproximação entre “moralização” e “espiritualização” seria falha. Num dado momento da discussão, Werner Stegmeier intervém e aponta de forma lúcida um caminho para pensar a questão. Ele sustenta que de fato os conceitos de moralização e espiritualização não se encontram no mesmo campo semântico em Nietzsche, já que a noção de moralização implicaria uma forma de vida comunitária e gregária, ao passo que o termo espiritualização apontaria para uma certa acepção de soberania e de liberdade frente às oscilações das forças, pulsões e afetos. Ambos os conceitos, porém, podem ser referidos à vontade de poder. André Muniz também se mostrou reticente à tese de que só podemos compreender CI referindo as ideias ali presentes à noção de vontade de poder, e perguntou ainda sobre uma possível relação entre as expressões: “espiritualização das paixões” (af.1), “espiritualização da sensibilidade” como “amor” e “espiritualização da inimizade” (af. 3) por um lado, e o par conceitual “grande amor” / “grande desprezo” por outro lado, noções que, em Nietzsche, aparecem lado a lado em algumas passagens e que sugerem enigmaticamente, em uma delas, uma compreensão do grande amor como grande desprezo. Chamou-se ainda a atenção para o acento colocado por Nietzsche sobre a noção de espiritualização nestas passagens, principalmente a partir da expressão “espiritualização da sensibilidade”, tendo em vista que o que encontramos frequentemente em sua obra é muito mais um apelo para a sensibilização (Versinnlichung). Em que sentido deveríamos, pois, entender que a espiritualização das paixões corresponde a um nível de vida superior?
A sequência da sessão foi dedicada à comunicação de André Muniz Garcia, doutorando da UNICAMP. Infelizmente o tempo não foi suficiente para que ele pudesse ler seu texto integralmente, mas as teses principais de sua comunicação foram apresentadas. Trata-se de uma interpretação do aforismo 1 do capítulo “Os melhoradores da humanidade”, que concede centralidade à noção de “moral como semiótica” para a compreensão de toda a reflexão de Nietzsche acerca dos fenômenos morais. O ponto de partida da interpretação de André Muniz é a questão da auto-evidência da moral, moral enquanto algo simplesmente dado. Nietzsche estaria exigindo do filósofo sobretudo um posicionamento que questione essa auto-evidência e que assuma o lugar da suspeita frente à moral. Antes de tudo, seria preciso compreender o caráter próprio da afirmação nietzscheana segundo a qual não existem fatos morais. Para André Muniz, essa afirmação implica uma crítica ao caráter convencional (e aqui ele se baseia no conceito de convenção de Josef Simons: Phiosophie des Zeichens) da interpretação moral do homem, pelo qual esta interpretação se tornou a mais evidente. Só se pode questionar filosoficamente um determinado fenômeno na medida em que este fenômeno não é visto como auto-evidente, e esta seria exatamente a exigência de Nietzsche ao reclamar suspeita frente à moral, isto é, desintegrar sua auto-evidência: “não existem fatos morais”. O próximo passo da argumentação é a compreensão de que a moral, enquanto crença, exige a comunicabilidade como seu elemento mais essencial. André Muniz se refere a Kant para sustentar essa tese: a pedra de toque da crença é a possibilidade de comunicá-la e torná-la válida para a razão de todo homem (CRP, B849/A821). Essa comunicabilidade, entretanto, não se baseia em nenhuma forma de raciocínio teórico, mas simplesmente no “tomar como verdadeiro” aquilo que deve ser comunidado (retornamos aqui ao problema da auto-evidência), motivo pelo qual Kant afirma que a crença é uma forma de pensamento moral da razão que toma como verdadeiro aquilo que não é acessível ao conhecimento. Nesse sentido, a moral seria um processo de compreensão (interpretação) que toma por verdadeiro aquilo que, segundo Nietzsche, é o mais problemático. Segundo André Muniz, este o ponto chave para a inserção da noção de compreensão plena (vollkommenes Verstehen), como o entende Josef Simon, na interpretação da perspectiva de Nietzsche, já que aquilo que é compreendido nesse sentido exclui a possibilidade de qualquer questionamento. Dentro desse contexto, moral seria semiótica no sentido em que tudo aquilo que faz parte do processo de compreensão é signo transmissível, comunicável. A evidência da moral se fundaria, em última instância, na evidência de signos de comunicação que não são mais questionados. Na seguida André explica a relação entre os conceitos de signo e de sintoma, relação que esclarece a visão de Nietzsche da moral como sintomatologia.
Como fechamento do dia tivemos a apresentação do volume: Letture della Gaia scienza – Lectures du Gai savoir, livro que reune os textos apresentados no último colóquio do GIRN.
Entramos no último dia do encontro com outras duas sessões paralelas: de um lado o tema era a Grécia, do outro as estruturas e intenções do CI enquanto livro. Confesso, entretanto, que estive presente somente em corpo em uma das mesas da primeira parte da manhã (o cansaço já começava a se manifestar), de forma que me pouparei de traçar comentários sobre esta sessão aqui, sob o risco de escrever bobagens. Os títulos e os resumos das comunicações podem ser vistos nos links que deixei no comentário à primeira postagem.
Na segunda parte da manhã fui assistir à palestra do Ernani Chaves, que falou sobre a visão de Nietzsche acerca de Platão no aforismo 2 do capítulo “O que devo aos antigos”. Partindo da declaração nietzscheana de que “Platão é entediante” (Plato ist langweilig), Ernani fez uma análise exaustiva do campo semântico do termo alemão langweilig, recuperando diversas acepções do termo, como a ideia de melancolia (Schwermut), tristeza, monotonia, desapontamento, amargura, desgosto (estas últimas palavras reunidas no campo semântico de Verdruß), assim como uma análise do substantivo Langweile, chamando atenção para sua relação com a ideia de um mal-estar existencial (existezielles Unbehagen), para classificar de forma exata o caráter da crítica nietzschana à figura de Platão no contexto de CI.
Após a comunicação de Ernani Chaves, Yanick Souladié, professor na universidade de Toulouse, apresentou seu trabalho sobre Sócrates e Platão no CI. Segundo ele, há ali uma mudança na recepção de Nietzsche das figuras de Sócrates e de Platão, principalmente com relação à interpretação de Sócrates presente em NT e de Platão presente nos cursos da época da Basiléia. A crítica nietzscheana desses personagens presente no CI deveria ser inserida no projeto de inversão dos valores. Se em NT Sócrates é visto como a personagem principal no contexto da decadência da tragédia e da dissolução do instinto propriamente grego, de forma que podemos estabelecer uma divisão entre Grécia trágica e Grécia socrática, este não é o caso em CI. Nesta última obra, Sócrates não é visto mais como causa, mas como ponto culminante de um processo já em andamento de dissolução do instinto grego, ou seja, ele perde a centralidade na narrativa da decadência da Grécia. A condenação da figura de Sócrates é agora justificada pelo fato de que ele teria impedido uma morte digna, “uma bela morte” da Grécia, a morte no momento certo, retardando seu processo de perecimento e instaurando assim uma morte lenta e decadente. Por sua vez, porém, Sócrates teria se concedido uma morte rápida e digna, uma bela morte, direcionando-se ao suicídio. Haveria aí, nesse sentido, uma certa diferença entre o homem Sócrates e sua doutrina. No caso da figura de Platão, poderíamos dizer, segundo Souladié, que ele é, de uma forma geral na obra de Nietzsche, mais apreciado do que Sócrates, principalmente no que diz respeito ao seu caráter legislador. No que pese as críticas radicais ao platonismo, a figura do homem Platão é frequentemente vista de um ponto de vista positivo. Em CI, porém, não é somente o platonismo enquanto metafísica idealista que é condedano, mas figura mesmo de Platão, enquanto homem e escritor. Ele é visto ali como pré-cristão e oposto, enquanto escritor, a todo o estilo romano. Como já havia mencionado Ernani Chaves na comunicação precedente, a acusação nietzscheana de que Platão é entendiante toca um ponto fundamental que vai além da simples crítica literária. A crítica ao estilo seria aqui extensiva à personalidade mesma do homem Platão. Durante a discussão, Andrea Urs Sommer perguntou pelo motivo da ausência de Platão em AC, já que em CI este é diretamente associado a uma forma de pensamento pré-cristã, como forma prototípica de tudo aquilo que viria a ser o cristianimo. Yanick Souladié considera este ponto efetivamente um problema e sugere que, apesar de todas as críticas de Nietzsche, ele continua vendo os personagens Platão e Sócrates com certo respeito e cuidado. Assim, no caso específico de Platão e de sua ausência em AC, a hipótese de Souladié é que Nietzsche consideraria injusto associar Platão diretamente ao cristianismo, tal como este é apresentado e criticado em AC, já que Platão, além de seu caráter como filósofo político, deve ainda ser visto como fundador de uma forma de pensamento particular. No caso do cristianismo, porém, tal como considerado historicamente em AC, a figura original do fundador desaparece e o que resta não é senão uma religião pregada por discípulos, na qual o caráter da individualidade, da particularidade se perde completamente dando lugar a uma vulgarização absoluta de uma ideia. Após a apresentação coloquei-lhe ainda as questões de qual seria o motivo que teria levado Nietzsche a reinterpretar a figura de Sócrates no contexto da decadência da Grécia antiga, retirando-lhe a centralidade nessa narrativa e vendo-o simplesmente como o ponto de expressão radical de um processo já em andamento, e ainda, já que Sócrates não é mais visto como causa desse processo, qual seria então essa causa. Questionei se a leitura que Nietzsche fez do livro Os céticos gregos, de Victor Brochard, não poderia tê-lo influenciado na sua releitura da decadência grega, já que o autor possui toda uma teoria sobre o processo de dissolução do espírito grego. A resposta de Yanick foi que a ideia da decadência do instinto grego já estava presente na filosofia de Nietzsche muito antes de sua leitura de Brochard, e que ele não está certo se essa leitura poderia ter contribuído de forma decisiva para sua reinterpretação em CI.
A sessão da parte da tarde contou com três apresentações: Céline Denat (“A figura de Platão no CI”), Werner Stegmeier (“Mesmo o mais corajoso entre nós raramente tem a coragem para aquilo que ele realmente sabe”. Limites do conhecimento filosófico segundo Nietzsche e sua arte da sentença”) e Giuliano Campioni (“Histrionismo da decadência e histrionismo dionisíaco: Wagner e Nietzsche”). A começar pela comunicação de Céline Denat, professora na Universidade de Reims, eu diria que seu trabalho constou em apresentar uma diferença na visão de Nietzsche de Sócrates e de Platão, no sentido de entendê-los como tipos completamente distintos, insistindo no caráter positivo da visão nietzscheana de Platão. Ela acentua a perspectiva política da intepretação do personagem Platão e sustenta que Nietzsche vê em sua figura um forte caráter legislador. Digno de nota seria a interpretação da mentira de Platão no contexto da constituição de sua república, a mentira que deve ser contada aos guardiões para que eles se mantenham em seus postos e tornem possível a estruturação do estado. Segundo Nietzsche, haveria aí uma verdadeira hipocrisia, fundada numa motivação política, e que colocaria em questão a vontade de verdade presente no idealismo platônico. Ou seja, para Nietzsche, Platão concederia claramente um privilégio à política frente ao idealismo. Em linhas gerais, a preocupação de Céline Denat em sua comunicação foi de salvaguardar a figura de Platão e lhe conceder um lugar particular no pensamento de Nietzsche, notadamente em CI, apesar das críticas direcionadas ao personagem. Após a comunicação, Yanick Souladié, que acabara de apresentar seu trabalho sobre o mesmo tema, porém a partir de uma interpretação oposta, coloca a questão que havia guiado sua leitura. A seu ver, a particularidade de CI seria justamente de inverter a relação entre Platão e Sócrates (no sentido de que agora Sócrates é visto como superior à Platão), concedendo um novo lugar a este último na narrativa sobre a Grécia e condenando o filósofo e o homem Platão como pré-cristão e, principalmente, como estiliscamente decadente e entendiante (condenação grave, se pensarmos na relação particular de Nietzsche com a questão do estilo). Ou seja, CI não seria de forma nenhuma o lugar de uma consideração positiva de Platão, antes pelo contrário, seria o lugar de sua condenação. A resposta de Céline Denat consistiu em dizer que a crítica de Nietzsche ao estilo de Platão é estratégica no sentido de se opor à interpretação corrente de Platão como um bom escritor e literato, com o intuito de chamar a atenção para o fato de que o que há de mais digno em Platão não é de forma nenhuma o estilo e a escritura, mas o projeto filosófico/político como um todo. Andrea Urs Sommer também colocou a mesma questão que ele já havia colocado à Yanick, a saber, como Céline Denat explicaria a ausência de Platão em AC, tendo em vista que em CI ele é considerado como pré-cristão. Segundo Céline, essa ausência se explicaria pelo fato de que Nietzsche considera o cristianismo na verdade como uma má leitura de Platão, de forma que o que haveria de efetivamente valoroso no pensamento platônico é deixado de lado em prol de uma radicalização do idealismo e do motivo da transcendência. Nesse sentido, seria ilegítimo inserir a figura Platão no contexto de uma análise do cristianismo, tal como esta é desenvolvida em AC.
Na penúltima comunicação do encontro fomos contemplados com uma bela e profunda exposição de Werner Stegmeier, um dos maiores nomes da Nietzsche-Forschung atual, professor em Greifswald. Partindo do aforismo 2 do capítulo “Sentenças e setas” (“Mesmo o mais corajoso entre nós raramente tem a coragem para aquilo que ele realmente sabe”), Stegmeier analizou tanto seu conteúdo quanto sua forma, refletindo sobre a arte da sentença e sobre os limites do conhecimento filosófico. A forma da sentença, segundo ele, comprime intuições e juízos surpeendentes em uma única frase. Ela é a forma mais curta do aforismo e, entre as formas da escritura filosófica de Nietzsche, a mais densa, a mais difícil de analisar e por isso, talvez, a mais interessante do ponto de vista filosófico. Stegmeier faz referência a algumas passagens de Nietzsche, onde ele afirma que “há sentenças nas quais toda uma cultura, toda uma sociedade se cristalizam repentinamente” (ABM 235), ou ainda: “por isso temos o direito de pronunciar, em sentenças, algo duvidoso sem nenhuma hesitação” (N 1876/77, 20 [3]). Ademais, as sentenças podem ser lidas separadamente, sozinhas, solitárias. Enquanto setas, flechas, elas devem atingir e ferir, talvez até mesmo matar. Stegmeier fala do Zaratustra de Nietzsche, de como seu discurso tem a potência de se tornar sentença, e cita algumas passagens nas quais a característa fundamental da sentença é trazida à luz de forma evidente: “A sentença fremente de paixão; a eloqüência tornada música; raios arremessados adiante, a futuros ainda insuspeitos” (EH, Za 6). Aqui, afirma Stegmeier, a estrutura proposicional da frase gramatical é modificada. Não se encontra o verbo, ligando um sujeito a um predicado. Tudo aquilo que é irrelevante é retirado, só aquilo que comprime a força do pensamento tem direito a um lugar na sentença. Ele diz ainda que Nietzsche, inicialmente, entremeou sentenças (Sprüche) em seus livros de aforismos, como em HH, A ou GC, mas somente em ABM ele ousou a plublicação de um conjunto somente de sentenças, “Sprüche und Zwischenspiele“. O segundo conjunto, “Sprüche und Pfeile“, em CI, seria o mais pleno e mais denso. Na sequência, Stegmeier apresenta o que ele interpreta como sendo a preparação para a confrontação com os limites do saber, a partir do aforismo 1 do capítulo em questão. Trata-se da noção de “ócio” do psicólogo. Ele chama atenção para o fato de que o termo “ócio” implica fundamentalmente uma ausência de compromisso com um objetivo determinado para uma tarefa. No ócio a tarefa não se direciona diretamente a uma meta, e exatamente por isso permanece aberta ao novo, ao surpreendente, ao auto-questionamento; ela é, nesse sentido, um prova para a grande saúde. Aqui ele entra no aforismo central de sua análise, a sentença: “mesmo o mais corajoso entre nós raramente tem coragem para aquilo que ele realmente sabe”, dizendo que essa senteça pode ser, para o filósofo, mortal. Ele faz então uma análise da preparação da sentença, recorrendo a cartas de Nietzsche nas quais várias formas iniciais da sentença são apresentadas, antes de se chegar à sentença final. Por último, a sentença é trazida para o interior da reflexão sobre o niilismo. Segundo Stegmeier, ela conduz para além do niilismo. Coragem é a disposição para a ação sob o risco, na incerteza do ponto de chegada e do ponto de partida. O pano de fundo dessa sentença seria essencialmente a reflexão sobre o niilismo, e Stegmeier se refere ao fragmento póstumo 9[123] de 1887: “Sobre a gênese do niilista. / Tem-se somente tarde a coragem para aquilo que se sabe”. O ponto chave da argumentação é o fato de que, em última instância, o saber, o pensamento, não possui objeto, ele corre em direção ao nada. Mesmo o niilismo, enquanto objeto de reflexão, ainda é capaz de tranquilizar, pois instaura algo a ser pensado. Mas o niilismo enquanto tal é a ausência absoluta de objeto do pensamento (absolute Gegenstandslosigkeit des Denkens). Não há, portanto, um saber sobre o niilismo. O saber nada sabe (Das Wissen weiß nichts). O niilismo não é nem mesmo pronunciável. Assim sendo, Nietzsche deixa de lado o termo “niilismo” na sentença em questão. Ele não é senão a ausência de objeto do pensamento. Ele só vem a ser verdadeiramente niilismo quando se sabe que não se pode saber a seu respeito e que não podemos nem mesmo nos tranquilizar com sua nomeação. O niilismo só se deixa compreender em uma sentença que não o pronuncie. Como resposta a uma questão colocada por um dos ouvintes, acerca do lugar do filósofo nessa trama dos limites do saber filosófico, Stegmeier responde que o filósofo é aquele que é capaz de realizar um experimento de pensamento no qual ele pode perecer.
Infelizmente, após essa comunicação, que, confesso, me tocou de uma maneira particular, com o cansaço já batendo insistentemente, e pelo fato de que a última palestra, de Giuliano Campioni (“Histrionismo da decadência e histrionismo dionisíaco: Wagner e Nietzsche”) foi em italiano, não fui capaz de acompanhá-la. Termino por aqui, pois, essa resenha, já que o que ocorreu depois foi somente uma discussão sobre o formato e sobre a temática do próximo encontro, que ocorrerá em Greifswald e tematizará os prefácios de Nietzsche. Não se sabe ainda se os textos apresentados nesse encontro serão publicados em livro, como os do encontro passado, mas tendo em vista a plataforma de publicações online que está sendo organizada, acredito que ao menos ali eles serão publicados.
Paralelamente à mesa da manhã do dia 29, apresentada no final da última postagem, houve a mesa “Arte e crítica da decadência” e o atelier intitulado “Decadência e fisiologia da arte”, cujas apresentações (os títulos e os resumos) podem ser vistas no programa e no caderno de resumos nos links postados no comentário à última postagem.
A seção da parte da tarde na qual estive presente foi intitulada: “Moral e espiritualização”, e constou de um atelier (“Espiritualização – Moral como contra-natureza”), do qual fizeram parte Isabelle Wienand e Clademir Luíz Araldi, e da apresentação de André Muniz Garcia, intitulada: “Moral é apenas linguagem de signos, apenas sintomatologia”: a interpretação semiótica de Nietzsche de fatos morais em “O melhorador da humanidade” Nr. 1”. As cominucações do atelier tiveram por tema respectivamente: “O tema da paz de espírito em “Moral como contra-natureza” e “A vontade de poder como “moralização” dos impulsos”. Isabelle Wienand iniciou com sua apresentação do tema da “paz de espírito” (Frieden der Seele, literalmente “paz da alma”), falando sobre a ambivalência da noção a partir do aforismo 3 de “Moral como contra-natureza” e apresentando toda uma gama de fragmentos póstumos de 1885-1888 sobre o tema (entre eles: 49[59] Sept. 1885; 7[6] Ende 1886-Frühjahr 1887; 10[157] Herbst 1887; 11[316] Nov. 1887-März 1888). Clademir Araldi, por sua vez, tratou do problema da ambivalência do termo “espiritualização” (Vergeistigung) em sua relação com a noção de “moralização” a partir do conceito de vontade de poder. A primeira questão através da qual os dois palestrantes foram confrontados veio de Isabelle Wienand, que questionou a aproximação feita por Clademir entre espiritualização e moralização, já que, segundo ela, esses conceitos se referem a pensamentos absolutamente distintos e mesmo contrários. De fato, se por um lado a noção de moralização implica uma referência essencial e evidente ao âmbito da moral (compreendida por Nietzsche como o âmbito da aniquilação dos afetos e das paixões), o termo espiritualização, de importância central nos aforismos 1 e 3 do capítulo em questão, serve para caracterizar exatamente um contra-movimento frente à moral aniquiladora das paixões. É exatamente na medida em que uma natureza decadente não é capaz de estabelecer um compromisso com seus afetos, de resistir às paixões no sentido de não reagir imediatamente e de forma deflagrante a um estímulo (e aqui retornamos ao tema apresentado por Brusotti em sua conferência), que ela tem necessidade da aniquilação das paixões: “il faut tuer les passions”. A espiritualização seria nesse caso a alternativa sadia para o estabelecimento de um “compromisso” com as paixões. A resposta de Clademir consistiu em chamar atenção para o fato de que o termo “moralização”, assim como a noção de “moral”, não devem ser entendidos sempre de um ponto de vista negativo e pejorativo. Existiria em Nietzsche, além da acepção negativa, uma certa compreensão da moral como forma de manifestação positiva da vontade de poder. E então ele apresenta sua tese de base: tendo isso vista, não seria possível compreender o capítulo em questão de CI, e mesmo a obra como um todo, sem ter em mente o conceito de vontade de poder. O fio condutor para a leitura dessa obra deve ser retirado da noção de vontade de poder. É preciso levar em conta que o período de composição de CI é marcado por uma intensa preocupação de Nietzsche com esse conceito, e que este aparece com uma frequência singular nos fragmentos póstumos, apesar de não ser mencionado diretamente no contexto dos aforismos em questão da obra publicada. A réplica de Isabelle Wienand é curta e precisa: mesmo que a noção de moral não seja sempre tomada em uma acepção puramente negativa, este é exatamente o caso no contexto dos aforismos reunidos sob o título “Moral como contra-natureza”. Ou seja, dentro desse contexto, a aproximação entre “moralização” e “espiritualização” seria falha. Num dado momento da discussão, Werner Stegmeier intervém e aponta de forma lúcida um caminho para pensar a questão. Ele sustenta que de fato os conceitos de moralização e espiritualização não se encontram no mesmo campo semântico em Nietzsche, já que a noção de moralização implicaria uma forma de vida comunitária e gregária, ao passo que o termo espiritualização apontaria para uma certa acepção de soberania e de liberdade frente às oscilações das forças, pulsões e afetos. Ambos os conceitos, porém, podem ser referidos à vontade de poder. André Muniz também se mostrou reticente à tese de que só podemos compreender CI referindo as ideias ali presentes à noção de vontade de poder, e perguntou ainda sobre uma possível relação entre as expressões: “espiritualização das paixões” (af.1), “espiritualização da sensibilidade” como “amor” e “espiritualização da inimizade” (af. 3) por um lado, e o par conceitual “grande amor” / “grande desprezo” por outro lado, noções que, em Nietzsche, aparecem lado a lado em algumas passagens e que sugerem enigmaticamente, em uma delas, uma compreensão do grande amor como grande desprezo. Chamou-se ainda a atenção para o acento colocado por Nietzsche sobre a noção de espiritualização nestas passagens, principalmente a partir da expressão “espiritualização da sensibilidade”, tendo em vista que o que encontramos frequentemente em sua obra é muito mais um apelo para a sensibilização (Versinnlichung). Em que sentido deveríamos, pois, entender que a espiritualização das paixões corresponde a um nível de vida superior?
A sequência da sessão foi dedicada à comunicação de André Muniz Garcia, doutorando da UNICAMP. Infelizmente o tempo não foi suficiente para que ele pudesse ler seu texto integralmente, mas as teses principais de sua comunicação foram apresentadas. Trata-se de uma interpretação do aforismo 1 do capítulo “Os melhoradores da humanidade”, que concede centralidade à noção de “moral como semiótica” para a compreensão de toda a reflexão de Nietzsche acerca dos fenômenos morais. O ponto de partida da interpretação de André Muniz é a questão da auto-evidência da moral, moral enquanto algo simplesmente dado. Nietzsche estaria exigindo do filósofo sobretudo um posicionamento que questione essa auto-evidência e que assuma o lugar da suspeita frente à moral. Antes de tudo, seria preciso compreender o caráter próprio da afirmação nietzscheana segundo a qual não existem fatos morais. Para André Muniz, essa afirmação implica uma crítica ao caráter convencional (e aqui ele se baseia no conceito de convenção de Josef Simons: Phiosophie des Zeichens) da interpretação moral do homem, pelo qual esta interpretação se tornou a mais evidente. Só se pode questionar filosoficamente um determinado fenômeno na medida em que este fenômeno não é visto como auto-evidente, e esta seria exatamente a exigência de Nietzsche ao reclamar suspeita frente à moral, isto é, desintegrar sua auto-evidência: “não existem fatos morais”. O próximo passo da argumentação é a compreensão de que a moral, enquanto crença, exige a comunicabilidade como seu elemento mais essencial. André Muniz se refere a Kant para sustentar essa tese: a pedra de toque da crença é a possibilidade de comunicá-la e torná-la válida para a razão de todo homem (CRP, B849/A821). Essa comunicabilidade, entretanto, não se baseia em nenhuma forma de raciocínio teórico, mas simplesmente no “tomar como verdadeiro” aquilo que deve ser comunidado (retornamos aqui ao problema da auto-evidência), motivo pelo qual Kant afirma que a crença é uma forma de pensamento moral da razão que toma como verdadeiro aquilo que não é acessível ao conhecimento. Nesse sentido, a moral seria um processo de compreensão (interpretação) que toma por verdadeiro aquilo que, segundo Nietzsche, é o mais problemático. Segundo André Muniz, este o ponto chave para a inserção da noção de compreensão plena (vollkommenes Verstehen), como o entende Josef Simon, na interpretação da perspectiva de Nietzsche, já que aquilo que é compreendido nesse sentido exclui a possibilidade de qualquer questionamento. Dentro desse contexto, moral seria semiótica no sentido em que tudo aquilo que faz parte do processo de compreensão é signo transmissível, comunicável. A evidência da moral se fundaria, em última instância, na evidência de signos de comunicação que não são mais questionados. Na seguida André explica a relação entre os conceitos de signo e de sintoma, relação que esclarece a visão de Nietzsche da moral como sintomatologia.
Como fechamento do dia tivemos a apresentação do volume: Letture della Gaia scienza – Lectures du Gai savoir, livro que reune os textos apresentados no último colóquio do GIRN.
Entramos no último dia do encontro com outras duas sessões paralelas: de um lado o tema era a Grécia, do outro as estruturas e intenções do CI enquanto livro. Confesso, entretanto, que estive presente somente em corpo em uma das mesas da primeira parte da manhã (o cansaço já começava a se manifestar), de forma que me pouparei de traçar comentários sobre esta sessão aqui, sob o risco de escrever bobagens. Os títulos e os resumos das comunicações podem ser vistos nos links que deixei no comentário à primeira postagem.
Na segunda parte da manhã fui assistir à palestra do Ernani Chaves, que falou sobre a visão de Nietzsche acerca de Platão no aforismo 2 do capítulo “O que devo aos antigos”. Partindo da declaração nietzscheana de que “Platão é entediante” (Plato ist langweilig), Ernani fez uma análise exaustiva do campo semântico do termo alemão langweilig, recuperando diversas acepções do termo, como a ideia de melancolia (Schwermut), tristeza, monotonia, desapontamento, amargura, desgosto (estas últimas palavras reunidas no campo semântico de Verdruß), assim como uma análise do substantivo Langweile, chamando atenção para sua relação com a ideia de um mal-estar existencial (existezielles Unbehagen), para classificar de forma exata o caráter da crítica nietzschana à figura de Platão no contexto de CI.
Após a comunicação de Ernani Chaves, Yanick Souladié, professor na universidade de Toulouse, apresentou seu trabalho sobre Sócrates e Platão no CI. Segundo ele, há ali uma mudança na recepção de Nietzsche das figuras de Sócrates e de Platão, principalmente com relação à interpretação de Sócrates presente em NT e de Platão presente nos cursos da época da Basiléia. A crítica nietzscheana desses personagens presente no CI deveria ser inserida no projeto de inversão dos valores. Se em NT Sócrates é visto como a personagem principal no contexto da decadência da tragédia e da dissolução do instinto propriamente grego, de forma que podemos estabelecer uma divisão entre Grécia trágica e Grécia socrática, este não é o caso em CI. Nesta última obra, Sócrates não é visto mais como causa, mas como ponto culminante de um processo já em andamento de dissolução do instinto grego, ou seja, ele perde a centralidade na narrativa da decadência da Grécia. A condenação da figura de Sócrates é agora justificada pelo fato de que ele teria impedido uma morte digna, “uma bela morte” da Grécia, a morte no momento certo, retardando seu processo de perecimento e instaurando assim uma morte lenta e decadente. Por sua vez, porém, Sócrates teria se concedido uma morte rápida e digna, uma bela morte, direcionando-se ao suicídio. Haveria aí, nesse sentido, uma certa diferença entre o homem Sócrates e sua doutrina. No caso da figura de Platão, poderíamos dizer, segundo Souladié, que ele é, de uma forma geral na obra de Nietzsche, mais apreciado do que Sócrates, principalmente no que diz respeito ao seu caráter legislador. No que pese as críticas radicais ao platonismo, a figura do homem Platão é frequentemente vista de um ponto de vista positivo. Em CI, porém, não é somente o platonismo enquanto metafísica idealista que é condedano, mas figura mesmo de Platão, enquanto homem e escritor. Ele é visto ali como pré-cristão e oposto, enquanto escritor, a todo o estilo romano. Como já havia mencionado Ernani Chaves na comunicação precedente, a acusação nietzscheana de que Platão é entendiante toca um ponto fundamental que vai além da simples crítica literária. A crítica ao estilo seria aqui extensiva à personalidade mesma do homem Platão. Durante a discussão, Andrea Urs Sommer perguntou pelo motivo da ausência de Platão em AC, já que em CI este é diretamente associado a uma forma de pensamento pré-cristã, como forma prototípica de tudo aquilo que viria a ser o cristianimo. Yanick Souladié considera este ponto efetivamente um problema e sugere que, apesar de todas as críticas de Nietzsche, ele continua vendo os personagens Platão e Sócrates com certo respeito e cuidado. Assim, no caso específico de Platão e de sua ausência em AC, a hipótese de Souladié é que Nietzsche consideraria injusto associar Platão diretamente ao cristianismo, tal como este é apresentado e criticado em AC, já que Platão, além de seu caráter como filósofo político, deve ainda ser visto como fundador de uma forma de pensamento particular. No caso do cristianismo, porém, tal como considerado historicamente em AC, a figura original do fundador desaparece e o que resta não é senão uma religião pregada por discípulos, na qual o caráter da individualidade, da particularidade se perde completamente dando lugar a uma vulgarização absoluta de uma ideia. Após a apresentação coloquei-lhe ainda as questões de qual seria o motivo que teria levado Nietzsche a reinterpretar a figura de Sócrates no contexto da decadência da Grécia antiga, retirando-lhe a centralidade nessa narrativa e vendo-o simplesmente como o ponto de expressão radical de um processo já em andamento, e ainda, já que Sócrates não é mais visto como causa desse processo, qual seria então essa causa. Questionei se a leitura que Nietzsche fez do livro Os céticos gregos, de Victor Brochard, não poderia tê-lo influenciado na sua releitura da decadência grega, já que o autor possui toda uma teoria sobre o processo de dissolução do espírito grego. A resposta de Yanick foi que a ideia da decadência do instinto grego já estava presente na filosofia de Nietzsche muito antes de sua leitura de Brochard, e que ele não está certo se essa leitura poderia ter contribuído de forma decisiva para sua reinterpretação em CI.
A sessão da parte da tarde contou com três apresentações: Céline Denat (“A figura de Platão no CI”), Werner Stegmeier (“Mesmo o mais corajoso entre nós raramente tem a coragem para aquilo que ele realmente sabe”. Limites do conhecimento filosófico segundo Nietzsche e sua arte da sentença”) e Giuliano Campioni (“Histrionismo da decadência e histrionismo dionisíaco: Wagner e Nietzsche”). A começar pela comunicação de Céline Denat, professora na Universidade de Reims, eu diria que seu trabalho constou em apresentar uma diferença na visão de Nietzsche de Sócrates e de Platão, no sentido de entendê-los como tipos completamente distintos, insistindo no caráter positivo da visão nietzscheana de Platão. Ela acentua a perspectiva política da intepretação do personagem Platão e sustenta que Nietzsche vê em sua figura um forte caráter legislador. Digno de nota seria a interpretação da mentira de Platão no contexto da constituição de sua república, a mentira que deve ser contada aos guardiões para que eles se mantenham em seus postos e tornem possível a estruturação do estado. Segundo Nietzsche, haveria aí uma verdadeira hipocrisia, fundada numa motivação política, e que colocaria em questão a vontade de verdade presente no idealismo platônico. Ou seja, para Nietzsche, Platão concederia claramente um privilégio à política frente ao idealismo. Em linhas gerais, a preocupação de Céline Denat em sua comunicação foi de salvaguardar a figura de Platão e lhe conceder um lugar particular no pensamento de Nietzsche, notadamente em CI, apesar das críticas direcionadas ao personagem. Após a comunicação, Yanick Souladié, que acabara de apresentar seu trabalho sobre o mesmo tema, porém a partir de uma interpretação oposta, coloca a questão que havia guiado sua leitura. A seu ver, a particularidade de CI seria justamente de inverter a relação entre Platão e Sócrates (no sentido de que agora Sócrates é visto como superior à Platão), concedendo um novo lugar a este último na narrativa sobre a Grécia e condenando o filósofo e o homem Platão como pré-cristão e, principalmente, como estiliscamente decadente e entendiante (condenação grave, se pensarmos na relação particular de Nietzsche com a questão do estilo). Ou seja, CI não seria de forma nenhuma o lugar de uma consideração positiva de Platão, antes pelo contrário, seria o lugar de sua condenação. A resposta de Céline Denat consistiu em dizer que a crítica de Nietzsche ao estilo de Platão é estratégica no sentido de se opor à interpretação corrente de Platão como um bom escritor e literato, com o intuito de chamar a atenção para o fato de que o que há de mais digno em Platão não é de forma nenhuma o estilo e a escritura, mas o projeto filosófico/político como um todo. Andrea Urs Sommer também colocou a mesma questão que ele já havia colocado à Yanick, a saber, como Céline Denat explicaria a ausência de Platão em AC, tendo em vista que em CI ele é considerado como pré-cristão. Segundo Céline, essa ausência se explicaria pelo fato de que Nietzsche considera o cristianismo na verdade como uma má leitura de Platão, de forma que o que haveria de efetivamente valoroso no pensamento platônico é deixado de lado em prol de uma radicalização do idealismo e do motivo da transcendência. Nesse sentido, seria ilegítimo inserir a figura Platão no contexto de uma análise do cristianismo, tal como esta é desenvolvida em AC.
Na penúltima comunicação do encontro fomos contemplados com uma bela e profunda exposição de Werner Stegmeier, um dos maiores nomes da Nietzsche-Forschung atual, professor em Greifswald. Partindo do aforismo 2 do capítulo “Sentenças e setas” (“Mesmo o mais corajoso entre nós raramente tem a coragem para aquilo que ele realmente sabe”), Stegmeier analizou tanto seu conteúdo quanto sua forma, refletindo sobre a arte da sentença e sobre os limites do conhecimento filosófico. A forma da sentença, segundo ele, comprime intuições e juízos surpeendentes em uma única frase. Ela é a forma mais curta do aforismo e, entre as formas da escritura filosófica de Nietzsche, a mais densa, a mais difícil de analisar e por isso, talvez, a mais interessante do ponto de vista filosófico. Stegmeier faz referência a algumas passagens de Nietzsche, onde ele afirma que “há sentenças nas quais toda uma cultura, toda uma sociedade se cristalizam repentinamente” (ABM 235), ou ainda: “por isso temos o direito de pronunciar, em sentenças, algo duvidoso sem nenhuma hesitação” (N 1876/77, 20 [3]). Ademais, as sentenças podem ser lidas separadamente, sozinhas, solitárias. Enquanto setas, flechas, elas devem atingir e ferir, talvez até mesmo matar. Stegmeier fala do Zaratustra de Nietzsche, de como seu discurso tem a potência de se tornar sentença, e cita algumas passagens nas quais a característa fundamental da sentença é trazida à luz de forma evidente: “A sentença fremente de paixão; a eloqüência tornada música; raios arremessados adiante, a futuros ainda insuspeitos” (EH, Za 6). Aqui, afirma Stegmeier, a estrutura proposicional da frase gramatical é modificada. Não se encontra o verbo, ligando um sujeito a um predicado. Tudo aquilo que é irrelevante é retirado, só aquilo que comprime a força do pensamento tem direito a um lugar na sentença. Ele diz ainda que Nietzsche, inicialmente, entremeou sentenças (Sprüche) em seus livros de aforismos, como em HH, A ou GC, mas somente em ABM ele ousou a plublicação de um conjunto somente de sentenças, “Sprüche und Zwischenspiele“. O segundo conjunto, “Sprüche und Pfeile“, em CI, seria o mais pleno e mais denso. Na sequência, Stegmeier apresenta o que ele interpreta como sendo a preparação para a confrontação com os limites do saber, a partir do aforismo 1 do capítulo em questão. Trata-se da noção de “ócio” do psicólogo. Ele chama atenção para o fato de que o termo “ócio” implica fundamentalmente uma ausência de compromisso com um objetivo determinado para uma tarefa. No ócio a tarefa não se direciona diretamente a uma meta, e exatamente por isso permanece aberta ao novo, ao surpreendente, ao auto-questionamento; ela é, nesse sentido, um prova para a grande saúde. Aqui ele entra no aforismo central de sua análise, a sentença: “mesmo o mais corajoso entre nós raramente tem coragem para aquilo que ele realmente sabe”, dizendo que essa senteça pode ser, para o filósofo, mortal. Ele faz então uma análise da preparação da sentença, recorrendo a cartas de Nietzsche nas quais várias formas iniciais da sentença são apresentadas, antes de se chegar à sentença final. Por último, a sentença é trazida para o interior da reflexão sobre o niilismo. Segundo Stegmeier, ela conduz para além do niilismo. Coragem é a disposição para a ação sob o risco, na incerteza do ponto de chegada e do ponto de partida. O pano de fundo dessa sentença seria essencialmente a reflexão sobre o niilismo, e Stegmeier se refere ao fragmento póstumo 9[123] de 1887: “Sobre a gênese do niilista. / Tem-se somente tarde a coragem para aquilo que se sabe”. O ponto chave da argumentação é o fato de que, em última instância, o saber, o pensamento, não possui objeto, ele corre em direção ao nada. Mesmo o niilismo, enquanto objeto de reflexão, ainda é capaz de tranquilizar, pois instaura algo a ser pensado. Mas o niilismo enquanto tal é a ausência absoluta de objeto do pensamento (absolute Gegenstandslosigkeit des Denkens). Não há, portanto, um saber sobre o niilismo. O saber nada sabe (Das Wissen weiß nichts). O niilismo não é nem mesmo pronunciável. Assim sendo, Nietzsche deixa de lado o termo “niilismo” na sentença em questão. Ele não é senão a ausência de objeto do pensamento. Ele só vem a ser verdadeiramente niilismo quando se sabe que não se pode saber a seu respeito e que não podemos nem mesmo nos tranquilizar com sua nomeação. O niilismo só se deixa compreender em uma sentença que não o pronuncie. Como resposta a uma questão colocada por um dos ouvintes, acerca do lugar do filósofo nessa trama dos limites do saber filosófico, Stegmeier responde que o filósofo é aquele que é capaz de realizar um experimento de pensamento no qual ele pode perecer.
Infelizmente, após essa comunicação, que, confesso, me tocou de uma maneira particular, com o cansaço já batendo insistentemente, e pelo fato de que a última palestra, de Giuliano Campioni (“Histrionismo da decadência e histrionismo dionisíaco: Wagner e Nietzsche”) foi em italiano, não fui capaz de acompanhá-la. Termino por aqui, pois, essa resenha, já que o que ocorreu depois foi somente uma discussão sobre o formato e sobre a temática do próximo encontro, que ocorrerá em Greifswald e tematizará os prefácios de Nietzsche. Não se sabe ainda se os textos apresentados nesse encontro serão publicados em livro, como os do encontro passado, mas tendo em vista a plataforma de publicações online que está sendo organizada, acredito que ao menos ali eles serão publicados.
Grande William, muito obrigado pelo cuidadoso relato do congresso internacional do GIRN. Sem dúvida que para nós que aqui estamos foi espetacular poder contar com esta verdadeira reportagem sobre o evento, nos proporcionando saber em primeira mão a situação da pesquisa-Nietzsche além das fronteiras brasileiras.
ResponderExcluirCaríssimo Oscar!
ResponderExcluirÉ um prazer poder colaborar com o blog do grupo (que, por sinal, acho uma idéia fantástica). Espero que ele possa ser efetivamente utilizado como espaço de divulgação e debate sobre o pensamento de Nietzsche.