A reação de Wagner não foi, contudo, a razão principal que levou Nietzsche a uma conclusão pessimista em relação à eficácia política do empreendimento reformista conduzido pela filosofia. Suas notas sobre os filósofos pré-platônicos assumem um tom mais pessimista conforme avançamos rumo à segunda metade dos anos 70, em um movimento que coincide com seu progressivo afastamento do projeto wagneriano: a perda das ilusões reformistas do jovem Nietzsche atinge tanto a sua esperança quanto ao presente quanto as suas convicções acerca do passado grego e parecem dar lugar a uma crescente suspeita de que o fracasso da filosofia no passado lança uma luz dolorosa sobre as esperanças do presente, desmascarando-as como meras ilusões. Este sentimento se confirma em 1876, na grande decepção com o evento de Bayreuth. Mas o afastamento de Nietzsche de suas ambições reformistas de juventude não se deve apenas a este conjunto de reflexões acerca da viabilidade e do papel político da filosofia e da arte. Ele ocorre também, eu até diria principalmente em função de uma nova e crescente demanda pessoal por liberdade e por recolhimento. Ou, como Nietzsche diria, por uma necessidade pessoal de resfriar a máquina superaquecida pelos anos de proximidade de Wagner e de Schopenhauer, com os quais o jovem filósofo compartilhou o gosto por uma atmosfera de exaltação e de entusiasmo constantes. Em outra ocasião eu chamei a atenção para o fato de Nietzsche citar Montaigne justamente nas duas considerações extemporâneas que tratam de seus dois grandes mestres, Schopenhauer e Wagner. Estas citações são o que há de mais revelador sobre o estado de espírito de Nietzsche ao compor estes dois escritos apologéticos, e para bom entendedor elas deveriam soar como uma grande traição aos seus objetos de veneração, pois nelas o que é dito sobre Montaigne contradiz inteiramente e ponto por ponto o que se diz de forma mais prolixa no restante do texto.
Isso não significa que o traço reformista e o ativismo tenham sido deletados da personalidade filosófica de Nietzsche. O que ocorre no período intermediário é um afastamento temporário destes componentes de sua personalidade e, a se acreditar no depoimento do próprio Nietzsche, adotado para fins terapêuticos pelo seu impulso de sobrevivência e por sua vontade de independência. Estes elementos serão paulatinamente reintegrados ao todo de sua personalidade, até que eles finalmente se imponham no ainda mais ambicioso projeto de maturidade, que aparece sob a problemática rubrica de uma transvaloração de todos os valores. Nas ambições reformistas ou revolucionárias do último Nietzsche o artista não fará sombra ao filósofo, que comparece como o único à altura da tarefa de legislar novos valores. Que esta expressão ambiciosa tenha sido reservada para os póstumos parece indicar que mesmo o último Nietzsche não acreditou sem alguma reserva no poder de intervenção da filosofia. Para minimizar um pouco a sua enorme desconfiança em relação às condições de êxito da intervenção filosófica, Nietzsche parece ter adotado duas estratégias distintas: (1) passou a conceber esta intervenção em termos mais abstratos e numa perspectiva de longa duração: não se trata mais de reformar a cultura alemã ou suas instituições artísticas e educacionais, e sim os valores. No final das contas e no cômputo geral os homens da vida contemplativa terminam sempre por triunfar, sendo os homens de ação meros atores no palco tragicômico da história, atores que seguem um texto redigido pelos verdadeiros protagonistas, os filósofos e, no passado, os fundadores de religião. Os artistas são incapazes de independência e estão a serviço de causas postas por outros; (2) do ponto de vista de uma intervenção mais imediata, Nietzsche parece ter concentrado seus últimos esforços numa tentativa de demolir o cristianismo mediante o sequestro de seu fundador legítimo, desvinculando-o de todos os grandes dogmas pelos quais se pautou o cristianismo historicamente existente, e mediante um ataque impiedoso à figura de seu fundador institucional, o apóstolo Paulo, contra o qual Nietzsche mobiliza argumentos que remetem em parte a valores compartilhados pelos cristãos.
Tenham todos um bom domingo.
Com vocês o jovem Nietzsche, mais uma vez.
Carta enviada por Nietzsche de Basel ao amigo Erwin Rohde em Hamburgo, datada de 15 de dezembro de 1870.
Meu querido amigo,
Sequer um minuto se passou desde a leitura de tua carta e já te escrevo. Queria dizer-te apenas isto: que sinto exatamente o mesmo que ti e que considero uma ignomínia se não nos desembaraçarmos algum dia deste torpor nostálgico por meio de uma ação enérgica. Agora ouça o que venho remoendo em meu espírito. Nós nos arrastaremos ainda durante alguns anos por esta existência universitária, e a tomaremos por um sofrimento instrutivo, que se tem que suportar com seriedade e com espanto. Entre outras coisas, este deve ser um tempo em que se aprende como ensinar, e aperfeiçoar-me nisso vale para mim como minha tarefa. Acontece apenas que eu me propus um objetivo algo mais elevado.
Pois com o tempo começo também a perceber qual é o ponto da doutrina schopenhaueriana acerca da sabedoria universitária. Aqui não é possível um ser inteira e radicalmente voltado para a verdade. Sobretudo, algo verdadeiramente revolucionário não poderá tomar a universidade como seu ponto de partida.
Nós só podemos, portanto, nos tornar verdadeiros mestres na medida em que formos capazes de alçar a nós mesmos, com todos os meios possíveis, para fora da atmosfera do tempo presente, e na medida em que formos não apenas mais sábios, mas sobretudo melhores. Também aqui eu sinto, sobretudo, a necessidade de ser verdadeiro. E também por isso eu não poderei suportar por muito mais tempo o ambiente das academias.
Por conseguinte, devemos nos livrar algum dia deste jugo; isto para mim é absolutamente certo. E então formaremos uma nova academia grega. Romundt com certeza estará conosco. Por ocasião de tua visita a Tribschen certamente tomastes conhecimento do plano de Wagner para Bayreuth. Eu tenho refletido comigo mesmo se não deveria ocorrer simultaneamente de nossa parte uma ruptura com a filologia, tal como ela tem sido praticada até o momento, e com sua perspectiva formadora. Estou preparando uma grande adhortatio [exortação] a todos aqueles que ainda não foram inteiramente sufocados ou engolidos pelo tempo presente. Mas quão lamentável é o fato de que eu tenha que expor-te estas coisas por escrito, e que cada um destes pensamentos já não tenha sido discutido contigo há muito tempo! E como não conheces o presente dispositivo na sua totalidade, meu plano provavelmente te parecerá um capricho excêntrico. Isto ele não é, ele é uma necessidade.
Um livro de Wagner sobre Beethoven que acaba de ser publicado poderá te dar uma pista de muito daquilo que eu agora espero do futuro. Leia-o, ele é uma revelação do espírito em que nós – nós! – viveremos futuramente.
E mesmo que tenhamos poucos companheiros que compartilhem de nossas ideias, eu ainda assim acredito que conseguiremos nos subtrair a esta corrente – com alguma perda, é claro – e alcançaremos uma pequena ilha onde não precisaremos mais tapar os ouvidos com cera. Seremos então mestres uns dos outros, e nossos livros não serão mais que anzóis destinados a conquistar este ou aquele para a nossa comunidade artístico-monástica. Viveremos e trabalharemos uns para os outros e nos deliciaremos uns com os outros – esta talvez seja a única forma sob a qual devemos trabalhar para o todo.
Para te provar a seriedade do meu intento já comecei a limitar as minhas necessidades, de modo a reservar uma pequena parte de meus bens. Também deveremos tentar a nossa “sorte” em loterias; e se escrevermos livros, eu exigirei para o período vindouro os mais altos honorários. Enfim, todos os meios não ilícitos serão empregados para que objetivamente estejamos em condições de fundar o nosso monastério. – Temos, portanto, a nossa tarefa para os próximos anos.
Que este plano possa, sobretudo, parecer-te digno de ser cogitado! A carta deveras comovente que acabo de receber de ti me dá a comprovação de que este era o momento de te expor o plano.
Não estaremos nós em condições de trazer ao mundo uma nova forma de academia,
“e acaso não posso, pela força do mais ardente desejar,
trazer de volta à vida das formas a mais singular?
como diz Fausto a propósito de Helena?
Ninguém sabe coisa alguma deste intento, e depende de ti se nós agora faremos ou não a Romundt um comunicado preparatório sobre o mesmo.
Nossa escola para filósofos não é, certamente, alguma reminiscência histórica ou um capricho excêntrico – pois não é uma necessidade que nos move nesta direção? Parece que o plano que fizemos quando estudantes, de viajarmos juntos, retorna sob uma nova forma, simbolicamente mais abrangente. Eu não pretendo ser aquele que mais uma vez te deixa na mão, como ocorreu outrora; disso eu ainda guardo remorsos.
Com as melhores esperanças
Teu fiel frater Fridericus.
De 23 de dezembro até 01 de janeiro estarei em Tribschen, Lucerna. – Ignoro inteiramente os planos de Romundt.
Que preciosidade acabo de descobrir aqui!
ResponderExcluirSou aluno da graduação do curso de História da UFES e tenho dedicado os últimos anos à investigação sobre o envolvimento de Nietzsche no conflito Franco-prussiano. Encontrar boas traduções para o português das cartas do filósofo sempre dão animo novo à pesquisa.
Parabéns pela iniciativa, Rogério. E muito obrigado. Tenho certeza que este blog contribuirá muito para minhas investigações.
saudações,
Rüsley Biasutti