Os temas pelos quais tenho me interessado e que me parecem ausentes desta discussão são os sguintes:
(1) A crítica que Nietzsche dirige aos pressupostos do que poderíamos chamar, recorrendo a uma expressão que a polêmica entre W. Clifford e W. James tornou célebre, de ética kantiana da crença (em especial da crença moral). Este tema tem uma importante conexão com o que cada um deles (Kant e Nietzsche) supõe que são as implicações práticas de certas variedades de ceticismo epistemológico. Nietzsche acusa Kant de recorrer ao ceticismo epistemológico para imunizar nossas intuições ou convicções morais tradicionais, no sentido de autorizar o agente moral a adotar crenças que não são epistemicamente confiáveis, mas que atendem a um suposto interesse da razão prática. Se esta é a posição de Nietzsche, isso significa que deveríamos atribuir a ele a defesa de uma posição rigorista no que se refere à ética da crença moral, pois ele parece estar recomendando (ou mesmo prescrevendo) que sejamos absolutamente rigorosos em relação às credenciais epistêmicas de nossas crenças morais, o que não é de modo algum uma exigência do kantismo, que autoriza algumas crenças cujo estatuto é de mera razoabilidade, mas que tem forte apelo intuitivo. Creio que Tugendhat tinha isso em mente ao afirmar que Nietzsche teria cometido o equívoco de submeter a consciência moral. às exigências da consciência intelectual, invertendo o que ele supõe que deveria ser a correta hierarquia entre valores epistêmicos e valores morais. A minha dúvida é se Nietzsche de fato defende algo como um rigorismo (evidencialismo extremado) no campo da ética da crença, ou se ele adota esta posição apenas para poder montar um argumento ad hominem contra a filosofia moral de Kant. Em outra ocasião eu defendi esta última alternativa ao comentar o aforismo 335 de A Gaia Ciência, mas a solução não me convenceu plenamente. No aforismo 335 Nietzsche procura explorar contra Kant a concessão que este mesmo faz (e que concorda com as posições de Nietzsche) de que nenhum agente moral tem acesso epistêmico às suas motivações últimas, o que na ótica de Kant é uma razão a mais para adotarmos o formalismo (ou seja, a consideração exclusiva da qualidade formal da máxima) como foco da avaliação moral e abandonarmos a perspectiva da análise introspectiva dos motivos, dada a obscuridade do coração humano, etc. Nietzsche entende que esta condição é incontornável, mas que a conclusão que se segue é que deveríamos suspender nosso juízo moral sobre as ações e sobre as pessoas. Aqui há uma sofisticada estratégia de contestação do kantismo em ética, uma estratégia que conduz ao amoralismo a partir de premissas epistêmicas, o que nem sempre é o caso, obviamente. Na maioria das vezes Nietzsche argumenta pelo amoralismo a partir de premissas relacionadas à defesa de valores vitais ou então quase religiosos (como nos casos em que ele argumenta por uma atitude inteiramente afirmativa que é identificada com o amor fati, por exemplo).
(2) O segundo tema que tem me interessado e que tem estado ausente da boa literatura secundária sobre Nietzsche e o kantismo a que fiz referência acima é o da estrutura formal do argumento transcendental. Creio que em um sentido fraco e modesto, que é o modo com contemporaneamente alguns filósofos consideram que ainda é possível mantermos a pretensão de construir bons argumentos transcendentais, nós poderíamos encontrar pelo menos uma ocorrência de argumento transcendental em Nietzsche, em alguns fragmentos póstumos nos quais ele defende o primado do corpo: neste contexto ele é seduzido pela possibilidade de construir com base nesta noção um argumento que reivindica para o mesmo o status de imprescindível. O argumento tem mais ou menos a seguinte estrutura: de todos os componentes da minha experiência, o mais saliente é o fato de que ela é uma experiência que se dá pela mediação corporal. De todos os elementos primitivos da experiência, o corpo é aquele para o qual temos as melhores razões para reivindicar a condição de imprescindível, no sentido de que é a nossa crença mais antiga e mais inerradicável. Tentar imaginar uma experiência da qual o corpo não fosse um componente seria o mais arduo dos exercícios filosóficos, no sentido de que seria o experimento mais radical de revisionismo metafísico. Creio que este é o critério para se considerar um candidato a argumento transcendental: ele funda uma reivindicação de indispensabilidade, certamente não para o conhecimento, mas para a experiência, no sentido mais básico. Creio que a associação frequente e quase imediata que se faz entre argumento transcendental e idealismo transcendental (uma associação que nada deve à estrutura formal do argumento, mas ao fato de que Kant tenha usado o primeiro para defender o segundo) nos cegou para a possibilidade de que esta fosse uma questão legítima a ser colocada para a filosofia de Nietzsche. É claro que esta é apenas uma das razões. A razão mais forte é que Nietzsche dominou como ninguém antes dele a arte de transformar reivindicações transcendentais em hipóteses genealógicas, o que foi uma verdadeira subversão do kantismo. Mas creio que não seria desmerecer a originalidade de Nietzsche como genealogista se chegassemos à conclusão de que ele considerou a possibilidade de argumentos transcendentais serem filosoficamente relevantes, mesmo que ele jamais tenha se decidido a publicá-los (o que está mais de acordo com seu temperamento epistemicamente cauteloso e avesso a apriorismos).
É isso. Alguém tem algum bom palpite sobre estes dois temas ou uma boa sugestão de leitura? Tendo em vista o interesse recente pelo tema mais geral sobre Nietzsche e o kantismo e o volume de publicações que isso tem gerado, é possível que eu tenha me esquecido de algum autor e cometido alguma grave omissão.